20180310

Novo, vasto & infinito: os 20 anos d'Os The Darma Lóvers

Neste 2018 completam-se 20 anos que Os The Darma Lóvers estão desmanchando o rígido, desfazendo críticas, sendo carregados pelo rio que transforma. Puro pretexto – ou gancho, no jargão do menino Jornalismo – para lembrar de uma das manifestações sônico-espirituais mais preciosas do pop brasileiro desde a piração racional de Tim Maia: um casal embrenhado em um mosteiro budista no interior do interior gaúcho, a viver e meditar e espraiar mensagens simples em melodias bonitas e vice-versa.

Nenung e Irinia viviam como seres urbanos. Raivosos, tristes, calados; um tipo bem estranho de bicho. Ele, na banda A Barata Oriental. Ela, em uma agência de publicidade. Até ouvirem o cara que nasceu da flor e formarem a dupla em 1998. No final de 2000, saiu o homônimo disco de estreia. “Branquinho” era tão minimalista quanto a capa que lhe rendeu o apelido. Violão e voz com sininho aqui, pianinho ali, harmônica e cordas pontuais a irradiar aromas folk e palavras singelas. Foi conversão imediata.

Em março de 2001, caiu do céu uma viagem de São Paulo a Porto Alegre para cobrir a gravação do disco ao vivo da Tribo de Jah em tributo a Bob Marley no Opinião. Era a oportunidade que eu precisava. Decorei as Quatro Nobres Verdades, vesti uma camiseta com estampa do ideograma do Om e me mandei para Três Coroas. Mais precisamente, para o topo de um dos morros que cercam a cidade a 90 quilômetros da capital gaudéria, onde repousa o Chagdud Gonpa Khadro Ling – lar dos Darma Lóvers.

Caminhões com material de construção não paravam de subir a estrada de terra rumo ao primeiro templo no Brasil erguido nos moldes tradicionais tibetanos. Pedreiros se ocupavam com oito blocos de concreto em frente ao prédio principal. Nenung me explicou que eram as stupas, representações das qualidades da mente iluminada e dos feitos extraordinários do Buda – não o único, mas o histórico, Sidarta Gautama. Forradas de cobre e bronze, elas comportam relíquias e textos sacros.

Mais adiante, enormes cilindros de ferro fizeram com que o músico voltasse a me socorrer. Com paciência milenar, ele disse que se chamavam rodas de oração e guardavam milhares de mantras (combinação de sons que simbolizam e comunicam a natureza de uma deidade e que conduzem à purificação e à realização) escritos e abençoados. Quando giradas em sentido horário, correspondem à recitação de todas as preces ali contidas. Eu não tinha nem entrado no templo e já me sentia pronto para atingir o nirvana (libertação).

Lá dentro, pinturas em padrão tibetano decoravam as paredes e o teto. Ao fundo, havia estantes com os livros sagrados e centenas de taças com água em uma espécie de altar que tomava toda a largura do recinto. Fiéis munidos de sadhanas (guia de meditação) sentavam em posição de lótus em colchonetes espalhados pelo chão para louvar Tara, a bodhisattva (alguém que desenvolveu bodhicitta, a aspiração de alcançar a iluminação em benefício de todos os seres) feminina da compaixão.

O casal morava em um conjunto anexo ao mosteiro e seguia uma rotina de puja (prática conjunta de meditação) às 6h, café da manhã às 7h30, trabalho até as 19h, mais puja para fechar o dia. Nenung recepcionava enxeridos como eu. Irinia ajudava na administração e cozinhava para Rinpoche – nascido no Tibete em 1930 e reconhecido ainda guri como a 16ª reencarnação do abade do monastério de Chagdug, naquele país. Com a ocupação chinesa em 1959, ele deixou a terra natal, rodou pelos EUA e se fixou em Três Coroas em 1995.

Autoridade máxima do mosteiro, foi Rinpoche quem rebatizou Irinia como Yang Zan (“melodiosa”, em tibetano) e Nenung como Pema Gyalpo (“rei do lótus”). Ué, Nenung já não era um nome oriental? “Não, vem de Pedro Verdum, jogador do Internacional na década de 1980. Minha turma começou a tirar sarro. Marcelo virou Marcelum; Marco, Marcum. Como sou Luís Fernando, apelidado de Neno, virei Nenum”, elucidou o dono da alcunha. Aí, bastou trocar o “m” por “ng” para ficar com cara de algo do outro lado do mundo.

Deixei os Darma Lóvers se dedicarem à última puja do dia e fui embora com um mala (espécie de rosário budista) no pescoço e um monte de energia positiva no coração. Voltei a falar com Nenung por telefone em 2002, por ocasião do lançamento do segundo álbum, Básico. Ele me contou que estava se preparando para o “desdobramento natural” de seu “projeto musical/existencial”: o isolamento em um retiro de três anos, três meses e três dias, com término previsto para 7 de setembro de 2005.

Fui reencontrá-los no extinto bar Drakkar, em Florianópolis, no show com base no disco Laranjas do Céu, de 2004. Não lembro se foi naquele ano mesmo (o que significaria que Nenung abortou o período de clausura) ou no seguinte, mas ainda tenho o CD autografado me desejando muita luz. Desfrutei de Simplesmente (2009) e Espaço! (2013), os trabalhos posteriores, mais como fã do que como “profissional da imprensa musical”. Nunca mais tive contato com eles desde então.

Rinpoche desencarnou em 2002.

Os Darma Lóvers permanecem na ativa, não sei se como casal ou apenas parceiros artísticos.

O mantra de Tara – Om Tare Tam Soha – tornou-se a imagem de fundo do meu celular. E é para a música deles que eu sempre me volto quando esqueço que “tudo é miragem e este é um rito de sonho e de passagem”. Até hoje, não encontrei jeito mais sutil de ligar aquele botão.

   (coluna publicada hoje ontem no Diário Catarinense)

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