20181221

70 músicas de 2018, o ano que tinha que ser bom em alguma coisa



Quase não teve medalhão. Tradicionais patinaram. Nomes consagrados fracassaram. Favoritaços decepcionaram. E eis que emergiu um pessoal. Que era desconhecido e/ou nunca havia sido levado a sério e/ou parecia conformado com a condição de figurante. Aí na hora da retrospectiva do ano rola aquela dúvida: virou isso ou sempre foi assim?

Na música também. À medida que a pasta 2018 engordava, uma seleção regida pelo signo do insano ia tomando forma. A banda querida que pela primeira vez ficava de fora. O artista infalível que vacilou. O campeão que ganharia fácil – se concorresse. Cada confirmação, uma dúvida; cada contradição, uma certeza.

De surpresa em surpresa, nasceu esta playlist marcada pela imperfeição. Precoce para estabelecer um novo padrão, presente demais para que represente alguma anomalia temporal. Mas tão sincerona quanto intransferível. Seja nos critérios, seja principalmente no risco de passar vergonha muito antes do esperado.

Com a diferença de que se trata apenas de um punhado de músicas.

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

2018 EM 70 MÚSICAS
1 | Criolo, Boca de Lobo



Lançada na semana que antecedeu o primeiro turno das eleições, a música de Criolo relaciona uma série de situações constantes no país da Lava-Jato. Citações óbvias se misturam com referências mais enigmáticas para captar o espírito (de porco) da época. Por estar atrelada a fatos, talvez daqui a pouco fique datada. Tomara e tanto faz: quando alguém quiser explicar como foi este 2018 – que começou a ser chocado bem antes de 1º de janeiro –, não vai ter como escapar da contagem funesta do refrão.

2018 EM 70 MÚSICAS
2 | Chaka Khan, Like Sugar



Se alguém dissesse que uma senhora de 65 anos ressurgiria com o maior groove do ano, seria alvo de chacota. Pois lady Khan teve a manha, embalada pelo clipe com pessoas dançando mais legal desde Bodyrock, de Moby (1999). A edição – um scratch visual cadenciado pelo ritmo – é tão fantástica que deixa a impressão de que o som vai perder o impacto sem a imagem. Nada que a levada absurda da Fatback Band usada como base não resolva.

2018 EM 70 MÚSICAS
3 | Eddie, A Correnteza



No lançamento, em fevereiro, a canção de abertura do sétimo álbum da banda de Olinda (PE) caiu bem. No decorrer dos meses, foi ganhando ares de premonição, ao descrever um cenário de terra devastada com aquele lirismo apocalíptico dos adoráveis malucos nordestinos. A noite se revelou fria e longa, a luz se tornou pouca e cinza, o mar revolto arrasou a razão. Resta torcer para que a profecia da letra se cumpra por inteiro. Que venha a brisa.

2018 EM 70 MÚSICAS
4 | GUM, The Blue Marble



A família Tame Impala não para de crescer. O spin off da hora da banda australiana fica a cargo do tecladista Jay Watson, também do Pond. A fruta não cai longe do pé, embora neste pomar surreal a laranjeira fique carregada de acerolas e a macieira dê laranja (que vale por dez acerolas). Todos bebem da mesma poção, mas reagem com comportamentos distintos e todo mundo se entende. Quanto mais doce, melhor.

2018 EM 70 MÚSICAS
5 | Vacationer, Magnetism



O americano Vacationer é daquelas bandículas que jamais serão enormes e relevantes. Tem um porção delas: comuns, regulares, incapazes de deflagrar paixões ou provocar ódio. Só não mofam no meio do caminho da completa indiferença graças a lampejos. Tipo engatar um single redondinho, em que tudo se encaixa e tudo agrada, eleva o nível do gosto médio e deixa a realidade mais feliz. Pode acontecer.

2018 EM 70 MÚSICAS
6 | Café Preto + Céu, Água, Fogo, Terramar



Quando não está vociferando hardcore à frente dos Devotos (ex do Ódio), o pernambucano Canibal se dedica ao reggae com o projeto paralelo Café Preto. As gordas linhas de baixo e reverberações dub são deixadas de lado na parceria com Céu, afastando-se da Jamaica para emular uma espécie de Tribalistas da cena alternativa. Ele no papel de Carlito Marrón (pela estampa) e de Arnaldantunes (pelo grave da voz); ela como Marisa aos Montes.

2018 EM 70 MÚSICAS
7 | Jungle, Beat 54 (All Good Now)



Quatro anos depois de estrear em disco sua adoração pelo funk e soul clássicos, o combo inglês voltou mais classudo. O balanço de matriz negra com elementos contemporâneos permanece firme e forte, só que em rotação desacelerada, sem pressa de chegar ao clímax. É nesse estado de permanente espera pela explosão que nunca vem que está o veneno. Como ensinou o craque Romário, "quem corre é a bola, não o jogador".

2018 EM 70 MÚSICAS
8 | Mahmundi, Vibra



A cantautora carioca integra o cada vez mais rarefeito grupo dos artistas que tentam dignificar o pop. Sem recorrer a truques baixos nem a apelos baratos, ela diluiu a essência oitentista da estreia em diversas direções, todas com uma assinatura que identifica a procedência. O resultado – definido com muita propriedade pela própria moça como “cafona gostoso” – às vezes é tudo o que você precisa para enfrentar e reverter dias ruins.

2018 EM 70 MÚSICAS
9 | Skylar Spence, Carousel



No início da década, o então Saint Pepsi despontou com uma pegadinha eletrônica para moderados. O barulho que fez em certo nicho incomodou a fabricante de refrigerante, obrigando-o a trocar de pseudônimo. Agora a multinacional torra milhões em marketing para atrair um público Moderno e Descolado®, enquanto o rapaz já conseguia – e continua conseguindo – o mesmo com muito mais legitimidade e DE GRAÇA. Parabéns aos envolvidos.

2018 EM 70 MÚSICAS
10 | LCD Soundystem, (We Don't Need This) Fascist Groove Thang



Versão renovada do libelo antifascista cometido pelo trio Heaven 17 em 1981. Na letra, sai o ex-presidente dos EUA, Ronald Reagan e entra o atual, The Orange One – ambos com um largo histórico de serviços prestados ao 1% dono da riqueza. No som, a new wave torta dos ingleses dá lugar ao dance punk adotado pelo americano James Murphy para unificar as pistas. Lá, como cá, corações, mentes e quadris progressistas estão preocupados.

2018 EM 70 MÚSICAS
11 | Arctic Monkeys, American Sports

2018 EM 70 MÚSICAS
12 | Lenny Kravitz, Low

2018 EM 70 MÚSICAS
13 | Albert Hammond Jr, Far Away Truths

2018 EM 70 MÚSICAS
14 | Stephen Malkmus & The Jicks, Bike Lane

2018 EM 70 MÚSICAS
15 | Courtney Barnett, City Looks Pretty

2018 EM 70 MÚSICAS
16 | Marcelo D2, Febre do Rato

2018 EM 70 MÚSICAS
17 | Charlotte Gainsbourg, Sylvia Says (A-Trak Remix)

2018 EM 70 MÚSICAS
18 | Blundetoo, My Weed My Queen

2018 EM 70 MÚSICAS
19 | Jungle, Heavy, California

2018 EM 70 MÚSICAS
20 | De Lux, 875 Dollars

2018 EM 70 MÚSICAS
21 | The Wombats, Black Flamingo

2018 EM 70 MÚSICAS
22 | Playboi Carti, R.I.P.

2018 EM 70 MÚSICAS
23 | Whyte Horses, Counting Down the Years

2018 EM 70 MÚSICAS
24 | Yuno, No Going Back

2018 EM 70 MÚSICAS
25 | Glue Trip, Fancy

20181220

2018 EM 70 MÚSICAS
26 | Thee Lakesiders, Parachute

2018 EM 70 MÚSICAS
27 | Parquet Courts Freebird II

2018 EM 70 MÚSICAS
28 | Jungle, Casio

2018 EM 70 MÚSICAS
29 | Rhye, Feel Your Weight

2018 EM 70 MÚSICAS
30 | Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso, Todo Homem

2018 EM 70 MÚSICAS
31 | 77:78, Love Said (Let's Go)

2018 EM 70 MÚSICAS
32 | Lulu Santos, Hoje em Dia

2018 EM 70 MÚSICAS
33 | Astronauts etc., The Room

2018 EM 70 MÚSICAS
34 | Peter Bjorn and John, Gut Feeling

2018 EM 70 MÚSICAS
35 | Catavento, Se Não Vai

2018 EM 70 MÚSICAS
36 | Triptides, Visitors

2018 EM 70 MÚSICAS
37 | Fantastic Negrito, Plastic Hamburgers

2018 EM 70 MÚSICAS
38 | Arctic Monkeys, Tranquility Base Hotel & Casino

2018 EM 70 MÚSICAS
39 | Edgar, Print

2018 EM 70 MÚSICAS
40| The Voidz, All Wordz Are Made Up

2018 EM 70 MÚSICAS
41 | A$AP Rocky, Praise the Lord (Da Shine) (feat Skepta)

2018 EM 70 MÚSICAS
42 | King Tuff, Neverending Sunshine

2018 EM 70 MÚSICAS
43 | The Sufis, All Knowing

2018 EM 70 MÚSICAS
44 | Anderson .Paak, Anywhere (feat Snoop Dogg & The Last Artful, Dodgr)

2018 EM 70 MÚSICAS
45 | Cat Power, Shine (feat Lana Del Rey)

2018 EM 70 MÚSICAS
46 | Shame, Tasteless

2018 EM 70 MÚSICAS
47 | Silent Poets, Shine (feat Hollie Cook)

2018 EM 70 MÚSICAS
48 | Leon Bridges, Beyond

2018 EM 70 MÚSICAS
49 | Bike, Anhum

2018 EM 70 MÚSICAS
50 | Gulp, Morning Velvet Sky

2018 EM 70 MÚSICAS
51 | Migos, Stir Fry

2018 EM 70 MÚSICAS
52 | Lee Perry, Your Shadow Is Black

2018 EM 70 MÚSICAS
53 | 77:78, Chilli

2018 EM 70 MÚSICAS
54 | BØRNS, Bye-bye Darling

2018 EM 70 MÚSICAS
55 | Superorganism, Something for Your M.I.N.D.

2018 EM 70 MÚSICAS
56 | BK, Titãs

2018 EM 70 MÚSICAS
57 | Ty Segall, Every 1's a Winner

2018 EM 70 MÚSICAS
58 | Wado, Onda Permanente (feat Teago Oliveira)

2018 EM 70 MÚSICAS
59 | Beatchild & The Slakadeliqs, Your Believer (Say Goodbye)

2018 EM 70 MÚSICAS
60 | Lana Del Rey, Mariners Apartment Complex

2018 EM 70 MÚSICAS
61 | Wander Wildner, Roubadas, Vícios e Malhos

2018 EM 70 MÚSICAS
62 | Makalister, D.A.Z.A City

2018 EM 70 MÚSICAS
63 | Hollie Cook, Turn It Around

2018 EM 70 MÚSICAS
64 | Rubel, Partilhar

2018 EM 70 MÚSICAS
65 | Pepeu Gomes, José

2018 EM 70 MÚSICAS
66 | Datarock, Sense of Reason

2018 EM 70 MÚSICAS
67 | Juliano Gauche, Tem Dia que É Demais

2018 EM 70 MÚSICAS
68 | Alice Caymmi, Spiritual

2018 EM 70 MÚSICAS
69 | Santigold, Run the Road

20181219

2018 EM 70 MÚSICAS
70 | Underworld & Iggy Pop, Bells & Circles



Sete minutos e meio com a melhor batida do Underworld em muito tempo fazendo a cama para Iggy Pop deitar falação sobre como era bom quando se podia fumar em avião. Só para começar já azucrinando.

20181030

Alento

20181008

Bode

Se você votou em um determinado candidato e não hostilizou nenhum eleitor adversário no caminho até a seção, não levou criança vestida de milico com metralhadora na mão nem se exibiu com o cano de um revólver diante da urna, parabéns por agir como uma pessoa normal. Mas tenha também em mente que:

Você considera mulheres, negros e gays como seres inferiores.

Você não respeita ninguém.

Você acha que tiro, porrada e bomba são solução.

Você acredita que quanto menos direitos, melhor.

Você despreza a ciência, o conhecimento e a pesquisa.

Você rejeita a verdade.

Você odeia tanto que não consegue enxergar mais nada além da bolha que construiu para si.

Você simplesmente não se importa.

Ainda dá tempo de você escrever um bonito testemunho de regeneração em sua biografia. Ou continuar assim e depois fingir que não participou da farsa. Mas aí talvez seja tarde para escapar do julgamento da História.

20180915

Mergulhe no disco novo de Mahmundi para espantar dias ruins

A realidade deste jeito e Mahmundi chega com um disco chamado Para Dias Ruins. A tentação de relacionar o oportuno nome do segundo trabalho da carioca com a situação é grande. E precipitada também: não resiste a uma passeada pelas nove canções esparramadas em 32 minutos sobre sol, amanhecer, verão e outras manifestações trópico-sazonais invocadas pela cantautora para falar do que importa de verdade na vida (leia entrevista abaixo).

O som continua soprando aquela brisa fresca, sem o cheiro tão impregnado do pop dos anos 1980 revisitado que marcava a estreia. Embora nunca tenha rejeitado (nem alimentado) essa influência, Mahmundi a deixa fluir até se tornar quase indistinguível. No single "Qual É a Sua?", recorre a um reggaezinho. A baladona "Outono" evoca uma atmosfera meio bluesy. "Tempo pra Amar" cai no R&B. "As Voltas" e "Eu Quero Ser o Mar" saúdam o poente à beira da praia.

Está tudo muito bom, tudo muito bem com Mahmundi em se afastar do rótulo. Questão de gosto, mas neste cantinho infinitesimal do litoral internético o calor bate mais forte quando o álbum envereda sem pudores por levadas, timbres e efeitos da década em que a artista de 31 anos nasceu – primeiro com "Alegria", e, de forma mais literal, movida pela batida charm de "Imagem" e pela onda maneiríssima de "Vibra". Não há dia ruim que resista.



ENTREVISTA
| Mahmundi 

O nome do disco tem a ver com o contexto atual do país?
Arte é uma coisa muito doida porque cada um vê o que quer. Estes últimos dois anos foram superdifíceis, e é óbvio que isso tem a ver com o país e minha localização nesse cenário como indivíduo. Mas não é sobre o processo político, é sobre a atmosfera ao redor, independentemente da vida que a gente leva. É mais sobre como você lida com as suas coisas em dias ruins.

É seu primeiro lançamento por uma grande gravadora (Universal), mudou alguma coisa?
Não mudou nada, só tem um suporte maior de profissionais que me dão recursos financeiros para investir em uma obra.

Isso não é melhor?
Para mim, foi. Cada artista reage de uma forma, depende também do que ele espera de uma grande gravadora, se sucesso como compositor ou como intérprete. Sou produtora musical e já estava muito bem resolvida em relação ao que eu queria fazer.

O que você espera, então?
Como já falei, amplia a imprensa, o alcance aos veículos. Mas sempre vai partir do produto inicial, que é a música. Antes eu estava em uma carreira independente muito mais focada em minhas pesquisas, fazendo um disco para me desenvolver. Agora, em uma multinacional, eu dialogo com um mercado maior. Mesmo assim, depende do perfil de cada artista, de como se apresenta, de como quer ser trabalhado, ser visto. A gravadora me deu essa confiança e eu pude testar outras sonoridades.

Como você quer ser vista?
Já passei dessa fase. Na verdade, os 30 anos, a maturidade, dão uma oportunidade para você descobrir calmamente quem você pode ser, uma autoconfiança para você não querer ficar “printando” seu ego por aí. Sou muito consciente do que eu sou e quero fazer música boa. Quero que as pessoas ouçam e que esse trabalho se consolide pelas canções.

(coluna publicada ontem no Diário Catarinense)

20180710

Nos 60 anos da Bossa Nova, uma playlist para mostrar a influência do gênero

Era para demorar no máximo quatro horas, tempo que a maioria dos cantores levava para gravar duas ou três canções. Mas não João Gilberto, que podia ser tudo, menos um cantor dado a arroubos operísticos, típico da época. Assim como não era convencional o tipo de música que ele se propunha a fazer para embalar sua voz miúda, quase sussurrada: delicada em vez de grandiloquente, cheia de nuances, com uma batida diferente e harmonias que desafiavam o padrão vigente. A Bossa Nova – como ficaria conhecido o estilo idealizado pelo baiano – pedia passagem.

Depois de muitas brigas de João com os instrumentistas que o acompanhavam para que entendessem a sonoridade que ele buscava, finalmente naquela quinta-feira foram registrados os takes definitivos de “Chega de Saudade” e “Bim Bom” no estúdio da Odeon no Rio de Janeiro. O resto é uma história que completa 60 anos neste 10 de julho, transformada em romance por Ruy Castro no livro homônimo ao lado A do compacto.

Embalada pelo primeiro título do Brasil em Copas do Mundo, conquistado 12 dias antes, a Bossa Nova iria se tornar a trilha sonora de um país com um futuro brilhante. Éramos os reis do futebol, a tenista Maria Esther Bueno ganharia o torneio de duplas de Wimbledon, produzíamos carros e a nova capital logo ficaria pronta. Entre esperanças frustradas e promessas não cumpridas, restou o poder emanado a partir de um banquinho e um violão.

Para Santa Catarina, a Bossa Nova tem ainda um significado especial: o maior nome da música do Estado, Luiz Henrique Rosa (1938-1985), começou identificado com o ritmo e nele compôs algumas de suas melhores canções. O disco independente Mestiço, quando já havia se bandeado para outras paragens sônicas, é o único trabalho do catarinense no Spotify, que fez uma compilação sobre o gênero. Mas na plataforma de streaming se acha material para montar a playlist abaixo, mostrando a influência daquela que seja, talvez, a maior contribuição nacional à cultura mundial.

(obs.: “Blue Island”, creditada apenas a Walter Wanderley, originalmente faz parte de Popcorn, disco gravado em conjunto por ambos em 1967.)


(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20180516

Pretensão e arte andam juntas na volta dos Arctic Monkeys

Decorridos cinco dias do lançamento, o tão aguardado sexto disco dos Arctic Monkeys continua dividindo coraçõezinhos indies. Tem gente que detestou, gente que a-mou, gente que ainda está confusa e gente indiferente – todas com a mesma intensidade e precipitação típicas do mundo feito de novidades que perdem qualquer apelo tão logo nascem. Por aqui, a única certeza é de que Tranquility Base Hotel and Casino fica melhor a cada audição.

Em vez de tentar reproduzir a pegada com a qual ampliou seu público de forma exponencial há cinco anos, a banda inglesa surpreendeu as expectativas com um álbum imprevisível. Massa, como o Radiohead fez em 2000, quando desafiou o senso comum com Kid A na sequência do estourado OK Computer. Sim, mas demais mesmo foi o caminho tomado pelo bando de primatas liderado por Alex Turner para eliminar as comparações com o antecessor AM.

Pistas de que o guitarrista e vocalista andava se satisfazendo com outros sons, poucas batidas & alguma pulsação vinham do Last Shadow Puppets, o projeto paralelo que o ocupou em 2016. O que ninguém supunha era o quanto o solteiro de 32 anos – desde os 22 na fita e antes dos 30 dono de um patrimônio de mais de 9 milhões de libras (cerca de R$ 45 milhões), uma das pessoas mais cool do planeta para a imprensa inglesa – já estava farto do rrrock.



De cara, o pasmo pela discrição das guitarras soterra qualquer outra impressão sobre o disco. Exceto esta “Four Out of Five” recém-promovida a single, com potencial para ser lado B extravagante na obra anterior, nada se assemelha ao histórico do grupo. O piano, que Turner aprendeu a tocar ainda criança e retomou ao ganhar um em comemoração ao seu retorno de Saturno, domina o cenário. Baixão só chega chegando, senão nem aparece.

Tudo é lento, retrô, meio classudo, meio bregoso. Embora nenhum refrão marque, o clima não sai da cabeça. É sério? Vencida a cabreirice, “Star Treatment”, “American Sports” e a faixa-título revelam que, na proposta do macaco-mor, a Base da Tranquilidade (pedaço da lua onde o homem pisou pela primeira vez, em 1969) que batiza o trabalho é um ponto do espaço que orbita em torno de astros como David Bowie e Serge Gainsbourg.

Nem sempre, porém, a viagem transcorre em céu de brigadeiro. Bem-vindos solavancos ocorrem em “She Looks Like Fun” e “Batphone”, quase experimentais se comparadas com a atmosfera reinante. A recepção no hotel e cassino fica por conta de “Ultracheese”, uma das baladas mais passionais dos Arctic Monkeys. Graça e mistério, conforto e desalento, desprendimento e pretensão – em um disco de música pop, ora pois.

Há uma citação que cabe à perfeição para explicar qual é a sensação provocada ao final dos 40 minutos consumidos pelas 11 faixas. É de Steve Jobs, e por aí você tira o quão longe os Arctic Monkeys foram; para que uma frase que provavelmente se referia a algum I-treco servir como comentário definitivo sobre, vale repetir, um disco de música pop. Ei-la: “A moda é o que parece bonito hoje mas irá parecer feio depois; arte pode ser feia em um primeiro momento, mas se torna bonita depois.” Tipo isso.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20180411

Nada disso seria possível se não fosse o Balão Mágico

Faltava um artista que unisse todas as tribos como o Norvana (a/c Dinho Ouro Preto). Não falta mais: a volta d’A Turma do Balão Mágico conseguiu a façanha de colocar no mesmo lado coxinhas e mortadelas, magistrados e legalistas, heteronormativos e transexuais. A ampla coalizão formada para avacalhar com a tentativa de três quarentões cantarem músicas infantis sem cair no ridículo só não encontra respaldo maior aqui porque o retorno do grupo é o tipo de notícia que mexe demais com a memória afetiva.

(Spoiler: vem aí mais um papo furado em primeira pessoa.)

Pela manhã, eu me defendia como diagramador na revista da Associação Brasileira do Cavalo Quarto de Milha. À tarde, como editor de música na revista General. Os dois empregos eram inspiradores e pagavam o aluguel, mas não representavam exatamente o que havia me levado a trocar Florianópolis por São Paulo naquele ano de 1995: a busca pelo suposto Glamour do Jornalismo. Traduzindo, a vontade de trabalhar em um grande veículo impresso, que eu não precisasse explicar o que era, onde circulava e qual a tiragem.

Então Simony apareceu. Em nova tentativa de reviver os dias de glória, ela anunciou que lançaria um disco solo. Como eu fazia parte da “imprensa musical”, recebi o convite da assessoria da gravadora para entrevistá-la. Na mesma semana, calhou de outra gravadora (bons tempos) pagar passagem aérea (ótimos tempos) para jornalistas assistirem a um show dos Mamonas Assassinas em Curitiba (tempos estranhos). No voo, encontrei Ricardo Alexandre, de O Estado de S. Paulo. Azar o dele.

O avião ainda rodava pela pista de Congonhas e eu já estava sugerindo um frila para o Estadão com a Simony. Ricardo alegou que, se fosse para falar com ela, ele próprio faria isso. Fui persistente – ou xarope, dependendo do ponto de vista: e se a gente (cumplicidade é tudo) fizesse uma bela reportagem com o que aconteceu com aquelas crianças que encantaram o país na década de 1980. Negócio fechado. Ricardo ficaria com Simony e Jairzinho, eu com Mike e Tobi (vejo que agora o “i” do apelido sumiu, deve ser numerologia).

O problema era que eu não fazia a menor ideia de como iria achá-los. Liguei para a assessora topando a entrevista oferecida com Simony, talvez ela mantivesse contato com eles. Conversamos quase duas horas sobre o repertório do disco e os planos para a carreira. Tudo enrolação. Meu único interesse era, entre perguntas protocolares, descobrir se ela tinha o telefone de seus ex-colegas de Balão Mágico. O “sim” me deixou mais excitado do que sua transformação em mulher, exibida pela Playboy no ano anterior.

Mike estava trabalhando com produção musical e superdisposto. Com Tobi, foi o oposto. Disse que não era a fim de falar, que era tímido, que sei lá o quê. “Meu chapa, sou repórter, vim de Santa Catarina e preciso te entrevistar. É minha chance de publicar em um grande jornal, estou na correria que nem tu”, apelei. Funcionou. No dia seguinte, lá estava eu na casa de classe média em que ele morava com os pais (ou só com a mãe, não lembro e o acervo do Estadão é fechado a não assinantes) no ABC paulista.

Antes tão reticente, Tobi abriu o coração. Contou que se chamava Vimerson, estava cursando Jornalismo e planejava trabalhar com rádio e TV. Que compunha e sonhava em voltar ao meio artístico assim que o tratamento contra as perebas do rosto desse resultado. Cercado por discos de ouro (do Balão Mágico) pendurados na parede, pegou o violão e me mostrou suas músicas. Gostei mais do café com bolo servido por sua amável mãe. Saí de lá com uma boa história, louco para ver meu nome em um dos maiores e mais respeitados diários do país.

Quando vi a matéria publicada, levei um choque. A editora havia colocado o título “Tobi promete voltar quando acabar com as espinhas”. A mãe dele ligou para o jornal atrás de mim. Deram o telefone da revista onde eu trabalhava. “Ligação para você, é uma senhora dizendo que é mãe de um tal de Vimerson”, avisou a recepcionista. Putz! Respirei fundo e fui enfrentá-la, já imaginando tomar uma mijada – e pronto para explicar que eu não tinha nada a ver com aquela sacanagem.

Para minha surpresa, ela só queria agradecer. Alguém de uma emissora de televisão vira a reportagem e chamou Vimerson para um estágio. Aí eu desabafei. Confessei que esperava um esporro dela pela sacanagem feita com o Tobi, que a gente capricha para escrever uma matéria e vem uma editora e estraga tudo e que jornalista é tudo mau-caráter mesmo. A mulher riu do meu desespero. “Não liga, meu filho. Deus escreve certo por linhas tortas”, despediu-se. Meses depois, eu seria contratado pelo Estadão, dando início a uma trajetória de conquistas que minha modéstia impressionante me impede de listar.

(coluna publicada ontem no Diário Catarinense)

20180325

Miranda, o amigo que fazia qualquer um se sentir especial

E foi-se o Miranda. Tudo o que eu queria dizer sobre ele foi escrito pelo Barcinksi e pelo Matias. Que a música brasileira teria tomado outro rumo na década de 1990, não fosse o Miranda a encampar – tanto como jornalista quanto produtor – a renovação no pop nacional. Que não economizava em distribuir elogios e conseguia fazer cada alvo de sua generosidade se sentir especial de um jeito único. Que qualquer um que teve a graça de conhecê-lo vai lembrar de alguma história vivida com ou por ele para contar.

Em agosto de 1994, o Miranda já era “o” Miranda e eu não passava de um jacu formado há um ano em Jornalismo. Trabalhava em uma entidade patronal e continuava a fazer o fanzine com que havia obtido o diploma na profissão. O emprego pagava as contas. O hobby alimentava a ambição de fazer parte da imprensa musical, renovada a cada vez que eu ia ao correio enviar a nova edição às pessoas das quais eu sonhava em me tornar colega – Miranda incluso.

Foi quando a prefeitura de Belo Horizonte inventou um festival chamado BH Rock Independent Fest (BHRIF). Fiquei muito a fim de ir. Liguei para lá, expliquei que era um representante da “mídia independente” e, como tal, dependia da caridade alheia. Seria possível me ajudarem de algum jeito? Responderam que não tinham como bancar as passagens, apenas a estadia. Já servia. Meti um atestado no serviço, peguei um ônibus de Florianópolis para Curitiba, outro de Curitiba para a capital mineira e, 22 horas depois, desembarquei no terminal rodoviário Governador Israel Pinheiro.

A organização cumpriu o combinado e me alojou em um baita hotel no bairro Savassi, o mesmo em que estavam hospedadas as atrações, gente da indústria fonográfica e repórteres do eixo Rio-São Paulo. Logo no primeiro dia, avistei aquele então cabeludo inconfundível, que eu só conhecia por fotos. Morrendo de medo de levar um gelo, cheguei perto e me identifiquei. “Bah, velhinho, tu é f*! Fica aqui comigo, vou te apresentar para um pessoal”, recebi em troca. O Miranda nunca tinha me visto antes e já me tratava como se fôssemos amigos desde sempre.

E assim foi até o final do festival: eu do lado dele e ele me anunciando a músicos e jornalistas como a última coca-cola do engradado. Na última noite, Miranda perguntou para onde eu ia. Respondi que iria voltar para Florianópolis. “Nada disso”, cortou ele. “Tem um ônibus fretado para a turma de São Paulo, tu vai junto e fica lá em casa.” Foram mais três dias rodando por redações e estúdios, com Miranda exagerando sobre minhas qualidades. Na despedida, o conselho: “Tu tem que vir para cá.”

Seis meses depois, eu estava de mudança para São Paulo – e lá estava Miranda, disposto a ajudar a me estabelecer. Ligava para um, marcava reunião com outro, dizia que um chapa dele de Floripa estava procurando trampo e que quem me desse uma chance não iria se arrepender. Com o tempo, nossos encontros rarearam, mas quando rolavam parecia que não fazia nem uma semana que a gente não se via. Inclusive na Ilha, onde ele vinha com certa frequência visitar a mãe em Jurerê.

Com Miranda, além de uma deliciosa receita de molho de tomate que sigo até hoje, aprendi para que serve dinheiro. “Compra um monte de gibi, disco, livro. Quando tu não tiver grana, fica em casa lendo e ouvindo tudo”, dizia. Também descobri que ser torto não significa preferir a empulhação ao talento. “A gente é maluco, mas gosta de coisa boa”, ensinava ele, com a tranquilidade de quem fez de “só alegria” e “excelente” os seus bordões. Obrigado, velhinho!

(coluna publicada anteontem no Diário Catarinense)

20180310

Novo, vasto & infinito: os 20 anos d'Os The Darma Lóvers

Neste 2018 completam-se 20 anos que Os The Darma Lóvers estão desmanchando o rígido, desfazendo críticas, sendo carregados pelo rio que transforma. Puro pretexto – ou gancho, no jargão do menino Jornalismo – para lembrar de uma das manifestações sônico-espirituais mais preciosas do pop brasileiro desde a piração racional de Tim Maia: um casal embrenhado em um mosteiro budista no interior do interior gaúcho, a viver e meditar e espraiar mensagens simples em melodias bonitas e vice-versa.

Nenung e Irinia viviam como seres urbanos. Raivosos, tristes, calados; um tipo bem estranho de bicho. Ele, na banda A Barata Oriental. Ela, em uma agência de publicidade. Até ouvirem o cara que nasceu da flor e formarem a dupla em 1998. No final de 2000, saiu o homônimo disco de estreia. “Branquinho” era tão minimalista quanto a capa que lhe rendeu o apelido. Violão e voz com sininho aqui, pianinho ali, harmônica e cordas pontuais a irradiar aromas folk e palavras singelas. Foi conversão imediata.

Em março de 2001, caiu do céu uma viagem de São Paulo a Porto Alegre para cobrir a gravação do disco ao vivo da Tribo de Jah em tributo a Bob Marley no Opinião. Era a oportunidade que eu precisava. Decorei as Quatro Nobres Verdades, vesti uma camiseta com estampa do ideograma do Om e me mandei para Três Coroas. Mais precisamente, para o topo de um dos morros que cercam a cidade a 90 quilômetros da capital gaudéria, onde repousa o Chagdud Gonpa Khadro Ling – lar dos Darma Lóvers.

Caminhões com material de construção não paravam de subir a estrada de terra rumo ao primeiro templo no Brasil erguido nos moldes tradicionais tibetanos. Pedreiros se ocupavam com oito blocos de concreto em frente ao prédio principal. Nenung me explicou que eram as stupas, representações das qualidades da mente iluminada e dos feitos extraordinários do Buda – não o único, mas o histórico, Sidarta Gautama. Forradas de cobre e bronze, elas comportam relíquias e textos sacros.

Mais adiante, enormes cilindros de ferro fizeram com que o músico voltasse a me socorrer. Com paciência milenar, ele disse que se chamavam rodas de oração e guardavam milhares de mantras (combinação de sons que simbolizam e comunicam a natureza de uma deidade e que conduzem à purificação e à realização) escritos e abençoados. Quando giradas em sentido horário, correspondem à recitação de todas as preces ali contidas. Eu não tinha nem entrado no templo e já me sentia pronto para atingir o nirvana (libertação).

Lá dentro, pinturas em padrão tibetano decoravam as paredes e o teto. Ao fundo, havia estantes com os livros sagrados e centenas de taças com água em uma espécie de altar que tomava toda a largura do recinto. Fiéis munidos de sadhanas (guia de meditação) sentavam em posição de lótus em colchonetes espalhados pelo chão para louvar Tara, a bodhisattva (alguém que desenvolveu bodhicitta, a aspiração de alcançar a iluminação em benefício de todos os seres) feminina da compaixão.

O casal morava em um conjunto anexo ao mosteiro e seguia uma rotina de puja (prática conjunta de meditação) às 6h, café da manhã às 7h30, trabalho até as 19h, mais puja para fechar o dia. Nenung recepcionava enxeridos como eu. Irinia ajudava na administração e cozinhava para Rinpoche – nascido no Tibete em 1930 e reconhecido ainda guri como a 16ª reencarnação do abade do monastério de Chagdug, naquele país. Com a ocupação chinesa em 1959, ele deixou a terra natal, rodou pelos EUA e se fixou em Três Coroas em 1995.

Autoridade máxima do mosteiro, foi Rinpoche quem rebatizou Irinia como Yang Zan (“melodiosa”, em tibetano) e Nenung como Pema Gyalpo (“rei do lótus”). Ué, Nenung já não era um nome oriental? “Não, vem de Pedro Verdum, jogador do Internacional na década de 1980. Minha turma começou a tirar sarro. Marcelo virou Marcelum; Marco, Marcum. Como sou Luís Fernando, apelidado de Neno, virei Nenum”, elucidou o dono da alcunha. Aí, bastou trocar o “m” por “ng” para ficar com cara de algo do outro lado do mundo.

Deixei os Darma Lóvers se dedicarem à última puja do dia e fui embora com um mala (espécie de rosário budista) no pescoço e um monte de energia positiva no coração. Voltei a falar com Nenung por telefone em 2002, por ocasião do lançamento do segundo álbum, Básico. Ele me contou que estava se preparando para o “desdobramento natural” de seu “projeto musical/existencial”: o isolamento em um retiro de três anos, três meses e três dias, com término previsto para 7 de setembro de 2005.

Fui reencontrá-los no extinto bar Drakkar, em Florianópolis, no show com base no disco Laranjas do Céu, de 2004. Não lembro se foi naquele ano mesmo (o que significaria que Nenung abortou o período de clausura) ou no seguinte, mas ainda tenho o CD autografado me desejando muita luz. Desfrutei de Simplesmente (2009) e Espaço! (2013), os trabalhos posteriores, mais como fã do que como “profissional da imprensa musical”. Nunca mais tive contato com eles desde então.

Rinpoche desencarnou em 2002.

Os Darma Lóvers permanecem na ativa, não sei se como casal ou apenas parceiros artísticos.

O mantra de Tara – Om Tare Tam Soha – tornou-se a imagem de fundo do meu celular. E é para a música deles que eu sempre me volto quando esqueço que “tudo é miragem e este é um rito de sonho e de passagem”. Até hoje, não encontrei jeito mais sutil de ligar aquele botão.

   (coluna publicada hoje ontem no Diário Catarinense)

20180210

G.R.E.S. Unidos da Fancaria

Sexta-feira, final do expediente, colombinas, pierrôs, cabrochas & arlequins preparados para cair na folia: o Carnaval já é uma realidade. Você não vai exigir que uma coluna de música seja parida nessas condições, né? Mas isso não significa ficar sem nada para ouvir durante um período de tanta licenciosidade, quando a transgressão é consentida até nos redutos mais conservadores. A ocasião pede uma playlist na qual impera a tradição (sempre), a família (às vezes) e a propriedade (nunca) em todo o seu esplendor. Mesmo sabendo que é tudo fantasia, o que vale é a ideia. Evoé!



(coluna publicada ontem no
Diário Catarinense)

20180202

Desesperada canção de desilusão

Não há nada acontecendo. As instituições estão funcionando. Está tudo normal. Entendido, ponto, parágrafo. Depois de dias de comoção instantânea e derrota anunciada em Porto Alegre, voltamos para mais uma sessão de alienação-cidadã. É deste recôndito onde a esperança foi trocada pela resistência que surge a pergunta inadiável:

O que leva você a clicar em uma coluna de música?

(A) O título
(B) Um artista que você conhece e gosta
(C) Um artista que você não conhece
(D) O colunista
(E) Nada, você chegou aqui por engano

Se entre suas respostas está a alternativa C, parabéns. É você que fomenta o novo ou, no mínimo, tem personalidade, curiosidade e, principalmente, senso crítico para não limitar seu menu sônico a recomendações feitas por algum algoritmo que jamais se emocionou com um acorde, um refrão, um verso qualquer.

Todo esse trelelê é para dizer que urge descobrir Curtis Harding. Não, não se martirize por (também) nunca ter ouvido falar do dito cujo. Quase ninguém ouviu, mesmo com a edição americana da revista coxinha Rolling Stone tê-lo saudado como “artista que você precisa conhecer” após se encantar com a estreia, Soul Power (2014).



Então: é dele o melhor disco do ano passado que você não ouviu, Face Your Fear. A página de Harding no Bandcamp informa que o álbum reflete as muitas “vidas musicais” pelas quais o autor passou. Quando criança acompanhava a mãe, cantora gospel, em turnês pelo estado de Michigan (EUA). Crescido, foi tentar a sorte em Atlanta e acabou gravando vocais de apoio para o Outkast e para Cee-Lo Green.

Até resolver mudar e fazer tudo o que queria fazer. Podia ser abrir um food truck, virar motorista de Uber, especular com bitcoin. Para sorte do mundo, foi soltar o falsete liberal em um punhado de canções em que o soul ora se apresenta como ritos de acasalamento, ora como pequenos libelos psicodélicos – duas saídas altamente passíveis (e não excludentes) em tempos tão disparatados.

A faixa-título e “Need My Baby” já deram o ar da graça aqui entre as 70 músicas que farão 2017 ser lembrado por situações mais agradáveis do que o 7 a 1 nosso de cada dia. Questão de preferência, porque “Welcome to My World”, “Ghost of You” e “As I Am” não ficam atrás quando tudo o que se precisa é de uma voz que diga para se manter numa boa e não desistir. Mesmo naquelas horas em que o medo parece imbatível.

***

A trilha sonora adotada pelos movimentos aliados ao líder sobranceiro das intenções de voto para a presidência da República (significa?) requer uma repaginada o quanto antes – sob risco de não conquistar corações & mentes e ainda provocar uma desmobilização danada. No Acampamento pela Democracia montado na capital gaúcha, os alto-falantes foram dominados por “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores” e “Que País é Este?”, mais enfadonhas do que desembargador falando o que já era esperado. Cônscia do seu dever, esta coluna toma a liberdade de sugerir novos hinos (pinçados de várias fases do cancioneiro nacional, para espelhar a diversidade geracional da militância) à revolução na playlist abaixo.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20180117

Ainda 2017: Tiro em Bob Marley inspira livro mais sonzeira do ano



Desencane da biografia daquele artista ou da história daquele movimento musical. O livro mais sonzeira dos últimos tempos é um romance. Chama-se Breve História de Sete Assassinatos, mas não se deixe enganar pelo título. Conforme observa um elogio na contracapa, não é breve e o número de mortos chega a dezenas. Em 736 páginas, o escritor Marlon James tece uma trama que começa na década de 1960 na Jamaica e acaba na de 1990 em Nova York, com a música no papel de uma luxuosa coadjuvante em todos os momentos.

O fio condutor é o ataque a Bob Marley em 3 de dezembro de 1976, às vésperas das eleições locais e 48 horas antes do show Smile Jamaica, para o qual ele fora convocado por ser o único capaz de aliviar a tensão entre esquerda e direita na ilha. Naquela noite, sete homens armados invadiram a casa do rei do reggae e descarregaram as metralhadoras em quem encontraram pela frente. Ninguém morreu. O Cantor – assim identificado na obra, nunca pelo nome – sobreviveu a um tiro no peito, reforçando as crendices sobre seus poderes sobrenaturais.

A partir desse fato real, o autor (jamaicano radicado nos Estados Unidos) desfia um emaranhado de relações envolvendo o submundo da capital Kingston, políticos, tráfico internacional de cocaína e a CIA. Os narradores se alternam: integrantes de gangues, uma mulher com três nomes diferentes, um espião, um repórter da revista Rolling Stone e até um fantasma. Cada um cita artistas, bandas, discos, canções e versos que se encaixam no contexto ou na construção dos personagens.

Bam Bam, um adolescente que desde os 10 anos flertava com a bandidagem, por exemplo, revolta-se com “Better Must Come”. Para o moleque, é difícil acreditar na melhora vindoura apregoada pela letra composta e defendida por Delroy Wilson diante da realidade na quebrada onde vive. “Às vezes um maluco morre porque olhou para outro maluco de um jeito que ele não gostou. Assassinatos não precisam de motivo. Isso aqui é a favela. Motivo é para gente rica. Aqui é loucura”, reflete.

Por motivos óbvios, o reggae comanda a trilha sonora. Além do soberano Marley, com várias músicas – incluindo “Ambush in the Night”, sobre o atentado que sofreu –, a nobreza do estilo brilha com o príncipe Dennis Brown, o chapeleiro maluco Lee Perry, o filósofo Burning Spear, o embaixador Jimmy Cliff e na voz de rouxinóis como Gregory Isaacs, Alton Ellis e Desmond Dekker, para mencionar apenas os mais conhecidos. Do ska ao rocksteady, do dub aos DJs, não há vertente que não esteja representada.

O embalo, porém, não se restringe a ritmos da Jamaica. Os Rolling Stones, que em 1973 gravaram o álbum Goat Head Soap por lá, são presença constante. Por parte crucial da ação se desenrolar na época da disco music, malandros e arrivistas em geral também se acabam nas pistas com Bee Gees, Boney M e ABBA. Enfim, uma seleção para rudeboy, roqueiro e fã de pop nenhum botar defeito, como mostra a playlist abaixo, organizada na ordem em que aparece no livro. Ouça para ler, leia para ouvir.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20180103

70 músicas de 2017 que sobreviveram à virada de ano



Nada está dando certo, música. Acontece algo que salva o dia, música. A rotina acaba com o tesão, música. A paixão renasce, música. O trânsito não anda, música. Tem um atalho por ali, música. Acaba o dinheiro, música. Pinta uma graninha extra, música. Todo mundo é legal até deixar de ser, música. Uma mão se estende de onde menos se espera, música.

Música sempre funciona.

Por mais que tentem reduzir a música a um meio, ela é fim. Embala, conforta, eleva – mas, principalmente, proporciona alívio imediato ou alegria instantânea com um acorde, uma batida, um refrão. Em três minutos, os problemas evaporam, a cabeça relaxa, o coração encontra razões para continuar bombando.

Aqui vão 70 doses que me ajudaram a vencer o ano passado. Algumas já fixaram residência na trilha sonora eterna. Outras irão se tornar lembranças das quais talvez eu até me envergonhe. Como toda lista, é pessoal & intransferível. Faça a sua e inclua Anitta, Trem Azul, Despacito, sertanejo universitário, o que quiser: vamos todos morrer mesmo.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

2017 EM 70 MÚSICAS
1 | Phoenix, Ti Amo

2017 EM 70 MÚSICAS
2 | Mavis Staples, Build a Bridge

2017 EM 70 MÚSICAS
3 | Dan Auerbach, King of a One Horse Town

2017 EM 70 MÚSICAS
4 | Curumin, Boca Cheia (feat. Indee Styla)

2017 EM 70 MÚSICAS
5 | Curtis Harding, Face Your Fear

2017 EM 70 MÚSICAS
6 | Cut Copy, Counting Down

2017 EM 70 MÚSICAS
7 | Dreadzone, Escape

2017 EM 70 MÚSICAS
8 | Otto, É Certo o Amor Imaginar?

2017 EM 70 MÚSICAS
9 | The Jesus and Mary Chain, Amputation

2017 EM 70 MÚSICAS
10 | Portugal. The Man, Feel it Still

2017 EM 70 MÚSICAS
11 | Childhood, Californian Light

2017 EM 70 MÚSICAS
12 | Kendrick Lamar, Humble

2017 EM 70 MÚSICAS
13 | Bike, O Enigma dos Doze Sapos

2017 EM 70 MÚSICAS
14 | Queens of the Stone Age, The Way You Used to Do

2017 EM 70 MÚSICAS
15 | Temples, (I Want to Be Your) Mirror

2017 EM 70 MÚSICAS
16 | Prophets of Rage, Living on the 110

2017 EM 70 MÚSICAS
17 | N.E.R.D & Rihanna, Lemon

2017 EM 70 MÚSICAS
18 | Ariel Pink, Feels Like Heaven

2017 EM 70 MÚSICAS
19 | Coruja BC1, Jazz Records

2017 EM 70 MÚSICAS
20 | Curtis Harding, Need My Baby


2017 EM 70 MÚSICAS
21 | Sleaford Mods, B.H.S.

2017 EM 70 MÚSICAS
22 | Ti.Po.Ta, Moonlight Avenue

2017 EM 70 MÚSICAS
23 | Curumin, Terrível

2017 EM 70 MÚSICAS
24 | Busy P, Genie (feat. Mayer Hawthorne)

2017 EM 70 MÚSICAS
25 | Snoop Dogg, Go On (feat. October London)

2017 EM 70 MÚSICAS
26 | Dan Auerbach, Cherrybomb

2017 EM 70 MÚSICAS
27 | Death from Above 1979, Caught Up

2017 EM 70 MÚSICAS
28 | Courtney Barnett & Kurt Ville, Over Everything

2017 EM 70 MÚSICAS
29 | Pratagy, Tramas Sutis

2017 EM 70 MÚSICAS
30 | My Magical Glowing Lens, Raio de Sol


2017 EM 70 MÚSICAS
31 | Beck, Colors

2017 EM 70 MÚSICAS
32 | Black Grape, Money Burns

2017 EM 70 MÚSICAS
33 | Boogarins, Onda Negra


2017 EM 70 MÚSICAS
34 | Summer Moon, Happenin'


2017 EM 70 MÚSICAS
35 | Maglore, Me Deixa Legal


2017 EM 70 MÚSICAS
36 | Tops, Petals

2017 EM 70 MÚSICAS
37 | Marcelo Yuka, Assim É a Água (feat. Bukassa Kabengele)

2017 EM 70 MÚSICAS
38 | Damian Marley, Nail Pon Cross

2017 EM 70 MÚSICAS
39 | Otto, Caminho do Sol

2017 EM 70 MÚSICAS
40 | Sinkane, Telephone


2017 EM 70 MÚSICAS
41 | Sir Sly, High

2017 EM 70 MÚSICAS
42 | Arcade Fire, Signs of Life

2017 EM 70 MÚSICAS
43 | Frabin, Public Loneliness

2017 EM 70 MÚSICAS
44 | Pond, Sweep me Off My Feet

2017 EM 70 MÚSICAS
45 | Liam Gallagher, Greedy Soul

2017 EM 70 MÚSICAS
46 | Foster the People, Sit Next to Me


2017 EM 70 MÚSICAS
47 | Queens of the Stone Age, The Evil Has Landed

2017 EM 70 MÚSICAS
48 | Cinnamon Tapes, Sol

2017 EM 70 MÚSICAS
49 | Nação Zumbi, Do Nothing

2017 EM 70 MÚSICAS
50 | Childhood, Understanding

2017 EM 70 MÚSICAS
51 | Delinquent Habits, Over & Over

2017 EM 70 MÚSICAS
52 | Kasabian, Good Fight


2017 EM 70 MÚSICAS
53 | The Jesus and Mary Chain, All Things Pass


2017 EM 70 MÚSICAS
54 | Bike, A Divina Máquina Voadora

2017 EM 70 MÚSICAS
55 | Dan Auerbach, Never in My Wildest Dreams

2017 EM 70 MÚSICAS
56 | Supervão, Crise Civil

2017 EM 70 MÚSICAS
57 | Louis La Roche, The Cute Song

2017 EM 70 MÚSICAS
58 | Paulo Miklos, Princípio Ativo

2017 EM 70 MÚSICAS
59 | Tennis, Ladies Don't Play Guitar

2017 EM 70 MÚSICAS
60 | Poolside, We Can Work It Out

2017 EM 70 MÚSICAS
61 | Washed Out, Floating By


2017 EM 70 MÚSICAS
62 | Motörhead, Shoot 'em Down

2017 EM 70 MÚSICAS
63 | Criolo, Menino Mimado

2017 EM 70 MÚSICAS
64 | Charlotte Gainsbourg, Ring-A-Ring O' Roses

2017 EM 70 MÚSICAS
65 | Beck, Can't Help Falling in Love

2017 EM 70 MÚSICAS
66 | Toro y Moi, Labyrinth

2017 EM 70 MÚSICAS
67 | Mallu Magalhães, Navegador

2017 EM 70 MÚSICAS
68 | Flora Matos, Parando as Horas

2017 EM 70 MÚSICAS
69 | Neil Young, Fly by Night Deal

2017 EM 70 MÚSICAS
70 | Foxygen, Follow the Leader