20170920

Rock in Rio: discurso e lacração demais, música de menos

Começou com fãs em desespero pelo cancelamento do show de Lady Gaga. Depois, a Vigilância Sanitária apreendeu os queijos do estande da chef Roberta Sudbrack pela falta de um selo de inspeção fiscal. Ao final, Anitta – vetada pela organização – anunciou que irá promover o próprio festival. Pensa: Lady Gaga. Vigilância Sanitária. Queijos. Estande. Chef. Selo de Inspeção Fiscal. Anitta. O primeiro final de semana do Rock in Rio foi divertidíssimo.

O festival chega à sétima edição alinhado com o que os clientes esperam. Quando surgiu, em 1985, o rock era o pop. Aí o pop virou um monte de coisa – com cada cada vez menos rock. Ficaram a marca Rock in Rio, mais forte do que a maioria das atrações, e o propósito de ser um festival pop. Só que um festival pop também virou um monte de coisa – com a música tendo um papel cada vez menos importante no pacote de “experiências” vendido a R$ 445 por dia.



Entre ações promocionais, área VIP, praça de alimentação com opções gourmet, ativações de marketing, espaço para games, campanhas publicitárias, brinquedos e propagandas, rolaram shows. E nem em cima do palco a música conseguiu ser protagonista. Encerrado o domingo, não se falava em nenhum hit, em nenhuma consagração ou mesmo de algum vexame. Mas bombaram manifestações que o mercado, a mídia e as redes sociais chamam de atitude.

Na abertura, a modelo Gisele Bünchen se emocionou ao discursar em defesa da Amazônia antes de Ivete Sangalo emendar com Imagine. A floresta voltaria a ser mencionada por Alicia Keys, acompanhada pela líder indígena Sônia Guajajara. Todas preocupadas com a ameaça à uma reserva ambiental representada pelo decreto assinado pelo atual inquilino do Palácio do Alvorada, que acumula processos em vez de sucessos.

Do mesmo jeito que o clássico de John Lennon festejado pela rainha do axé, o “fora Temer” puxado durante as passagens de Elza Soares, Blitz e Skank teve seu significado esvaziado. Ecoou muito mais como uma saudação típica de multidão, tipo “ah, eu tô maluco”, “uh, tererê” ou “bota pra f*”, do que um desejo de despejar o (segundo a Polícia Federal) “chefe do quadrilhão”. A corrupção acabou, as instituições estão funcionando, vamos beijar muito.

Liniker e Johnny Hooker juntaram as duas causas e se beijaram na frente de um cenário onde se lia “amar sem Temer”. Ainda na seara gay, a drag queen Pablo Vittar roubou a cena na apresentação de Fergie. Não fosse sua sexualidade, talvez nem citados seriam. Se os artistas não se incomodam com isso, beleza. Adam Levine, do Maroon 5, preferiu vestir uma camiseta contra as drogas estampada com uma folha de maconha, a erva maldita.

Nesse contexto, não espanta que os dois shows memoráveis tenham ignorado quaisquer bandeiras. Um, de Nile Rodgers, desfilou os hinos da disco music que o guitarrista e produtor cunhou a bordo do Chic ou a serviço de Madonna, David Bowie e Daft Punk. Outro, de Justin Timberlake, trouxe um especialista em entreter a massa com um pop impecavelmente embalado. Goste-se ou não, o ex-N’Sync é um profissional do ramo.

O Rock in Rio retorna nesta quinta e vai até domingo, com Aerosmith, Bon Jovi, Guns ‘N Roses The Who, Offspring e Red Hot Chili Peppers no palco principal. Além deles, o elenco escalado (Alice Cooper, Cee-Lo Green, Nightmares on Wax, Sepultura, BaianaSystem) permite supôr que a música – sobretudo o rock, que inusitado – vá superar o papo-furado e a “lacração”. Mas sempre haverá um Rogério Flausino ou um Dinho Ouro-Preto para não decepcionar a gente.

(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20170912

Secos, molhados & revisitados

Desde que largou os Titãs, em 2010, Charles Gavin andava sossegado. Continuava envolvido com música à frente do programa O Som do Vinil (Canal Brasil) e coordenando a reedição de álbuns fora de catálogo de artistas nacionais, uma rotina tranquila se comparada à agenda como baterista de uma das formações mais icônicas do rock brasileiro. Até bater a saudade de estar em uma banda novamente – o que o levou a montar o Primavera nos Dentes, projeto de releituras dos Secos & Molhados que acaba de sair em disco.

— A ideia surgiu da vontade de voltar aos palcos. Mas fazer o quê? Tocar Titãs seria legítimo, mas poderia ser mal-compreendido, falarem que eu estava fazendo cover de mim mesmo — explica ele, por telefone, de sua casa no Rio de Janeiro.

A solução foi encontrada em um repertório com que o próprio Gavin já havia lidado em 1999, ao remixar a versão digital dos dois LPs do antigo grupo de Ney Matogrosso. Lançados originalmente em 1973 e 1974, ambos conseguiram um sucesso sem precedentes, chegando a superar campeões de vendas como Roberto Carlos. Em plena ditadura, lá estava aquele figura de sexualidade ambígua, rosto e corpo pintados, saracoteando na sala de estar do cidadão de bem.

— Lembro que tinha 12, 13 anos. Quando começaram a aparecer na TV, foi um fenômeno. Da criança a vovó, todo mundo gostava. Era provocativo, mas tão diferente que não tinha como a censura proibir. Entre a minha geração, eles são uma unanimidade. Quando tive certeza de que essa música era importante – e não só para mim – ficou claro o que eu faria — diz.



Definido o alvo, Gavin passou a recrutar os futuros companheiros. Para a guitarra, chamou Paulo Rafael, integrante do lendário grupo pernambucano Ave Sangria e há mais de quatro décadas diretor musical da banda de Alceu Valença. Com ele, veio o baixista Pedro Coelho, egresso do musical sobre Cássia Eller. A cantora gaúcha Duda Brack assumiu os vocais e, para completar o time, trouxe o violinista e guitarrista Felipe Ventura, da cena independente carioca. O nome surgiu de uma música dos Secos & Molhados.

— Pois é, alguém nos avisou nas redes sociais que em Florianópolis também havia um Primavera nos Dentes, foi uma coincidência.

A intenção inicial, confessa o ex-titã, era reproduzir a obra dos homenageados com a máxima fidelidade. No entanto, após alguns ensaios, o quinteto percebeu que algo não estava funcionando. Os timbres, a tecnologia e o contexto afastavam o resultado do que ele realmente se propunha. Ou, como admite Gavin, “parecia uma banda cover, tudo o que a gente não queria, que era honrar os Secos & Molhados”.

— Aí partimos para a recriação. Mantivemos a poesia, mas os arranjos são nossos. De “O Vira”, por exemplo, restou apenas o refrão. Delírio” é outra: mostramos para o coautor da música, Paulo Mendonça (que também assina “Sangue Latino” e “O Doce e o Amargo”) e ele entrou em um transe tamanho que não reconheceu nem a letra que havia escrito.

De fato, as 11 faixas revisitadas parecem até autorais, com todos os riscos embutidos em mexer em um repertório clássico. Segundo Gavin, quem poderia reclamar – Ney, Gerson Conrad e os demais integrantes do grupo –, aprovou as transformações. Com a bênção dos autores, o Primavera nos Dentes agora se prepara para ganhar os palcos.



Geração na ativa
Outros artistas associados aos anos 1980 que estão com discos novos na praça

Paulo Miklos, A Gente Mora no Agora
Este é o terceiro disco de Miklos, mas o primeiro após a saída dos Titãs, no ano passado. Por isso, ele encara A Gente Mora no Agora como uma estreia – e foi com tesão de principiante e experiência de veterano que se cercou de um monte de gente para celebrar a música brasileira nas mais variadas vertentes. A presença de parceiros de gerações tão diferentes contribui para a diversidade do álbum, mas também se reflete na irregularidade. Entre acenos a questões contemporâneas e resquícios de “MPB universitária”, o artista que já releu Noel Rosa no projeto Quinteto em Branco e Preto e interpretou Adoniran Barbosa no cinema se dá melhor quando investe em baladões românticos, como “Estou Pronto” (composta com Guilherme Arantes), “Todo Grande Amor” (com Silva), “Princípio Ativo” e “Risco Azul” (ambas com Céu).



Paralamas do Sucesso, Sinais do Sim
Cada álbum depois do acidente de ultraleve que deixou o guitarrista e vocalista Herbert Vianna paraplégico em 2001 é uma vitória, o que talvez justifique o otimismo que transborda do 21º disco do grupo já a partir do título. O sucessor de Brasil Afora (2009), no entanto, não traz tantos indícios assim para o ouvinte acreditar em um futuro melhor – pelo menos no que diz respeito à banda. O rock que o trio tinha a manha de conjugar com outros estilos como ninguém para forjar uma sonoridade brasileira aparece de forma convencional, muito aquém do já apresentado em trabalhos anteriores. Os ritmos afrocaribenhos, outro ponto forte nestes 34 anos de carreira, empalideceram (vide “Itaquaquecetuba” e “Sempre Assim”). Aí, nem a produção de Mario Caldato (Beastuie Boys) consegue dar jeito.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20170908

Lemmy, o herói do disco de covers do Motörhead

Se existe um paraíso para onde vão os roqueiros desencarnados, provavelmente é um lugar com Under Cöver rolando em loop infinito. Trata-se de um disco de, adivinhe, covers. Mas não um disco de covers qualquer: é, acima de tudo, um disco assinado pelo Motörhead. Mesmo fiel às versões originais, a banda imprime sua marca a cada um dos 11 clássicos revisitados entre 1982 e 2015. Nem poderia ser diferente, em se tratando do grupo liderado pelo eterno Lemmy Kilmister. Que homem!



Poucos personificam com tanta propriedade os ideais do rock como o baixista e vocalista falecido há quase dois anos. Feio, sujo & malvado, ele se sente em casa em “Breaking the Law” (Judas Priest) e “Whiplash” (Metallica), sócias do gênero musical pelo qual é reconhecido. Também se identifica com “Cat Scratch Fever” (Ted Nugent) e “Shoot ’em Down” (Twisted Sister), condizentes com o selvagem estilo de vida que sempre seguiu. Só por isso, o álbum já cumpriria a função social de conscientizar a juventude.

Apesar do jeitão ostensivo, porém, Lemmy não se limitava à música pesada. Algumas das releituras mais contagiantes miram canções de artistas de outros estilos, como “Rockaway Beach” (Ramones) ou “Jumpin’ Jack Flash” (Stones). Aquela voz inconfundível cantando “Heroes” (David Bowie) convence qualquer um de que o papo é para valer porque vem de um maluco adorável e autêntico, com imperfeições e idiossincrasias. Como são os únicos heróis em que dá para acreditar – seja apenas por um dia, seja for ever and ever.



Sempre bom
A rigor, Hitchhiker, o recém-lançado “disco perdido” de Neil Young, não é novo nem inédito. Foi gravado em uma noite de 1976 em um estúdio de Malibu, na Califórnia, e oito das 10 faixas já apareceram em trabalhos posteriores, ainda que com arranjos diferentes. As exceções são “Hawaii” e “Give Me Strength”, inspiradas pela separação entre o artista e a atriz Carrie Snodgrass. Tanto faz: o que importa é ouvir o imaculado canadense reproduzindo toadas como “Pocahontas” ou “Powderfinger” acompanhado somente por violão, gaita e piano. Sempre alentador, às vezes rústico, bonito demais.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

20170901

Queens of the Stone Age traz o rock para 2017

Fazer rock no século 21 é dureza. No lado artístico, equivale a investir em um estilo no qual os cânones já foram todos escritos e a linguagem parece ter se esgotado. No aspecto comercial, significa disputar mercado com sertanejo, funk (carioca), rap, R&B, eletrônica, qualquer música não movida a guitarras. Por isso, um disco como Villains, do Queens of the Stone Age no último dia 25, deve ser saudado com efusão. Sem reinventar a roda, a banda californiana conseguiu se renovar, e por tabela, sacudir a poeira do gênero em 2017.



Não dá para precisar o quanto Mark Ronson teve a ver com isso, mas a proeza passa pelas mãos dele. O produtor deixou o sétimo álbum do combo liderado pelo vocalista e guitarrista Josh Homme mais “para cima”. Favor não confundir com os serviços prestados a uma clientela que inclui de Amy Winehouse a Bruno Mars: já na abertura, com a introdução de quase dois minutos preparando o espírito para a entrada triunfante de “Feel Don’t Fail Me”, fica claro que a maldade continua sendo o maior patrimônio do grupo.



O que se pode creditar à produção é um frescor manifestado em timbres, cadências e pontuais intervenções, sempre potencializando a vocação da banda – sexy em “The Way You Used to Do”, densa em “Domesticated Animals”, frenética em “Head Like a Haunted House”. A herança zeppeliniana de “The Evil Has Landed” completa o ciclo de alternativas para o rock voltar a ter alguma relevância. Nem que seja apenas no nicho aonde foi confinado desde que o pop começou a privilegiar outros sons, outras batidas, outras pulsações.

Soul indie
Que agradável surpresa é este Childhood, que pingou na rede com Universal High. Putz, lá vem o cara com essas bandecas que ninguém conhece e menos gente ainda vai gostar, pensa a audiência qualificada. O hoje quinteto surgiu na Inglaterra como uma dupla, estreou em 2012 e agora chega ao segundo disco cheio de amor para dar. Quem tiver boa vontade e ouvir vai descobrir um grupo que parte do soul para cunhar delicinhas pop – tipo um Lenny Kravitz indie, como insinuam “Californian Light”, “Cameo” e a balada retrô “Understanding”.



(coluna publicada hoje no
Diário Catarinense)