20170527

Os discos que ficaram órfãos sem Kid Vinil

Nos obituários escritos em memória a Kid Vinil, não raro o artista falecido há uma semana foi descrito como “uma pessoa muito doce”. Não era elogio para dourar a biografia de quem já transcendeu este plano. Na meia dúzia de vezes em que estive com ele, a gentileza e a ternura que demonstrou foram muito maiores do que seu vasto conhecimento musical. Uma delas foi em 2000, para ouvi-lo falar de seus discos. Como uma forma de homenageá-lo, segue abaixo o resultado do encontro, publicado na seção Minha Coleção da extinta – e, circunstancialmente, saudosa – revista Bizz de junho daquele ano. Esteja onde estiver, nunca deixe o bolachão parar de rodar, Kid.



Disco é apelido

Da porta da sala do apartamento dá para ver seis torres giratórias, com capacidade para uns 500 CDs cada. Em volta, estantes por toda a parte, abarrotadas de vinis. Para onde se olha, estão prateleiras e mais prateleiras com discos. Num canto, o espaço das caixas especiais, dos mais variados artistas, tamanhos e formas. A riqueza de detalhes da paisagem fonográfica é tanta que torna ridículo qualquer trocadilho com a coleção de um sujeito chamado Kid Vinil. O cara tem disco que não acaba mais. “Uns 10 mil LPs dos anos 1960 e 1970 na casa dos meus pais, 5 mil aqui e 6 mil CDs”, calcula o feliz proprietário, que organiza o acervo de um jeito todo particular. “Não tem ordem nenhuma, mas acho o que quero em segundos”, garante.

Como que para provar o que disse, Kid pega de uma estante o compacto de “Magical Mistery Tour”, dos Beatles. “O primeiro disco que comprei, aos 12 anos. Fui com meu irmão aos filmes Os Reis Do Ie-Ie-Iê e Submarino Amarelo e fiquei fascinado pela banda”, conta o apresentador do programa Lado B, na MTV. Na época, 1967, dinheiro para música era artigo escasso no orçamento da sua família. Para poder gastar com rock, ele precisava ser, digamos, criativo. “Torrava a grana do passe escolar”, diverte-se.

Mais tarde, o garoto que ainda atendia por Antonio Carlos Senefonte descolou um jeito melhor de obter os álbuns cobiçados. “Entrou um português na minha classe e apresentou Rolling Stones e Jimi Hendrix para todo mundo”, lembra. “Aí eu pegava os discos dele emprestados e não devolvia”, diz, levantando-se e voltando com a cópia do Beggar’s Banquet [dos Stones] na mão, para confessar em seguida: “Era dele”.

De jovem sem condições para comprar discos a esse maníaco que hoje acrescenta “uns 20 CDs e uns dez vinis” por mês à coleção, o caminho percorrido foi longo. Começou na seção de recursos humanos da gravadora Continental. “Um dia, o presidente da companhia estava atrás de uma música do Seals & Crofts, ‘Fresh Freaks’, que rolava na rádio e ninguém sabia de quem era. Como conhecia a canção, fui promovido para o departamento artístico”, conta. Seu acervo, já com mil títulos, ganhava a oportunidade de rápida ampliação.

Em 1977, a empolgação de Kid – então fã de rock progressivo – com a música dava sinais de cansaço. O punk o salvou. “Meu irmão que não deixou, senão eu ia trocar meus álbuns pelos lançamentos que chegavam na Wop Bop, a loja onde achei God Save The Queen, dos Sex Pistols.” Ao mesmo tempo, pintou também a new wave americana. Assim, no programa que manteve de 1979 a 1981, na rádio Excelsior, ele (estreando o apelido, óbvio para um tarado por discos) mandava “Blitzkrieg Bop”, dos Ramones, e “Psycho Killer”, dos Talking Heads.

A estas alturas, Kid recebia álbuns de todo mundo e comprava outros tantos. Mas nada que se comparou à fartura proporcionada pelo estouro de “Sou Boy”, em 1983. A bordo da banda Magazine, ele torrava o cachê dos shows em viagens para procurar mais discos. “Ia quatro vezes por ano para Londres e Nova York buscar coisas do Devo, Runaways, The Dickies…”, enumera. Com o fim do grupo, em 1987, Kid voltou para o rádio e iniciou na TV Cultura, nos programas Boca Livre e Som Pop, até 1993. Daí em diante, retornou às gravadoras, primeiro na Eldorado e atualmente na Trama.

Agora, imagine quantas vezes ele já não escutou a piadinha: “Ei, quando é que você vai mudar seu nome para CD?”. Na verdade, Kid resistiu ao laser. "Conheci em 1987, na Alemanha, mas só comprei um aparelho em 1992, porque ganhei uma caixa de singles dos Stones”, afirma. “Da década de 1990, por exemplo, muitas bandas só tenho em vinil”, diz, puxando LPs do Primal Scream, Happy Mondays e Inspiral Carpets. “Mesmo assim, devo ter uns mil discos nos dois formatos. Sou fã dos grafismos, das capas, da arte que se perde com o CD.”

Kid vai ilustrando suas predileções com uma infinidade de picture discs, tiragens limitadas, capas com dobras malucas. No meio de tantas opções, reconhece que os mais tocados são Dead Boys, New York Dolls e Blondie. “Não me canso de ouvi”, conta ele, que teve seu primeiro contato com a música pop aos sete anos, por intermédio de uma tia fã de Elvis Presley. Aliás, na estante de cima estão três caixas do Rei do Rock, lacradíssimas. “Não tive tempo de abrir”, alega, enquanto aponta para outras caixas igualmente virgens. Mas, só de poder sentar no sofá e contemplar cada item de sua coleção, Kid já está satisfeito.

Prateleira especial

Faces | A Nod Is as Good as a Wink
“Meu guru na época, 1971/72, o jornalista Ezequiel Neves, escreveu loucuras sobre a banda. Foi uma abertura para outros sons. E as pegadas de guitarra de Ron Wood me enlouqueciam. Com o piano boogie, então, era um casamento perfeito.”



Dead Boys | We Have Come for Your Children
“Eu tinha um programa de punk na rádio Excelsior e rolava essas coisas todas. Esse disco me chamou a atenção porque eles fizeram uma versão fantástica de ‘Tell Me’, dos Stones. Até hoje, é uma das minhas bandas prediletas.”



Chicago | VI
“Eles faziam uma fusão de jazz e rock com sabor pop que marcou minha adolescência. E eu sempre gostei da parte gráfica dos discos deles, adorava o jeito que eles exploravam o logotipo da banda. Esse é em papel-moeda, mas tem imitando ferro, chocolate, madeira…”



Raspberries | Side 3
“Minha cópia é importada, mas saiu no Brasil na mesma época (1973) pela EMI, com essa capa recortada e tudo. É uma das bíblias indispensáveis para se entender o power pop. É a banda do Eric Carmen, que depois virou um bregão.”



Streets (coletânea)
“Traz uma banda chamada Nose Bleeds, com Morrissey [Smiths] nos vocais e Billy Duffy [The Cult] e Vinny Reilly [Durutti Column] nas guitarras. Nunca saiu em CD, paguei 60 dólares em uma loja em Los Angeles. Na Inglaterra, não se acha ele por menos de 300 libras.”



Elephant’s Memory | Elephant’s Memory
“Era uma banda que chegou a acompanhar John Lennon, antes da Plastic Ono Band – inclusive o primeiro disco deles foi produzido por John e Yoko. Este é o segundo trabalho do grupo, regado a psicodelia total. Basta dar uma conferida na capa.”



(coluna publicada ontem no Diário Catarinense)

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