20151023

Beleza de onde menos se espera

Por mais anacrônico que seja, gravadoras continuam mandando discos para este pessoal que “escreve de música”. Como não há tempo hábil para escutar todos, eles vão se acumulando. Uns viram porta-copos, outros são repassados àquele amigo que é fã e alguns, pasme, acabam até sendo ouvidos por desencargo de consciência. Em uma dessas pilhas, repousava um CD de capa branca, com uma cabeça de mulher de perfil. Referência zero, apenas autor e título: Melody Gardot, Currency of Man. Que bela surpresa! Uma onda meio jazz, meio blues, com um quê de soul, cantada por uma voz feminina ronronando como Janis Joplin de cara limpa.



Meia dúzia de cliques revelam uma história incrível por trás da moça. Americana de New Jersey, em 2003 foi atropelada enquanto andava de bicicleta. Perdeu a memória e ficou com dificuldades para falar e andar. Durante o tratamento, aprendeu a tocar guitarra. Ainda de cama, começou a compor. Quando teve alta, havia se tornado uma charmosa artista, com inseparáveis óculos escuros & bengala devido a sequelas do acidente. Hoje tem 30 anos, Currency of Man é seu quarto trabalho e só resta lamentar não havê-la conhecido antes.

Com base em sua própria experiência, Melody desenvolveu com universidades de medicina um programa filantrópico chamado Chateau Gardot, que usa a musicoterapia para reparar o cérebro e restaurar a qualidade de vida. Claro que você não precisa saber nada disso para se deliciar com a suavidade de “Preacherman”, “Morning Sun” ou “She Don't Know”. Poderiam ser mais cruas, mas o bem-estar provocado por elas tornam menos penoso aturar esses dias chuvosos que encharcam a primavera catarinense.

Parangolê hereditário
Já que o papo é cantora, conheça também Ava Rocha. O sobrenome, as grossas sobrancelhas e, principalmente, o estranhamento de sua obra, denunciam: é filha de Glauber. Aos 36 anos, a moça chega com o disco Ava Patrya Yndia Yracema suscitando comparações que vão de Gal Costa a Cássia Eller. O melhor parâmetro, porém, está na família. Ava traduz em música o que o pai propunha no cinema – antropofagia, tropicalismo, Brasil profundo, vanguarda, olhar cosmopolita; tudo com resultados às vezes insuportáveis, sempre muito loucos.



LOCAIS
////// Vinolimbo, assunto de estreia desta coluna no longínquo agosto de 2014, manda avisar que está com disco novo. O moleque que a partir de Florianópolis emana vibrações eletrônicas para todo o universo agora ataca com Synistanai, lançado pelo selo porto-alegrense Nas. Confira a viagem abaixo ou no Bandcamp do rapaz – neste último, para baixá-lo gratuitamente basta colocar “0” no valor.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

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