20151002

Acomodados à sombra da lenda

Dois guitarristas, senhores na melhor idade, peças-chave de bandas com uma larga folha corrida de serviços prestados à música, estão com trabalhos novos depois de um longo tempo. As semelhanças entre Keith Richards e David Gilmour param por aí. O stone vem com Crosseyed Heart, um punhado de canções quase caseiras, como se uma descompromissada sessão de gravação com amigos tivesse virado um disco. Exatamente o oposto de Rattle that Lock, em que o ex-Pink Floyd exibe (pela ordem) conceito, técnica, virtuosismo e sentimento meticulosamente planejados.

Comecemos pelo mais velho. Aos 71 anos, “Keef” reaparece com seu terceiro álbum, o primeiro desde 1992. Da mesma forma que não há razão aparente para essa demora entre um e outro, nada explica sua volta que não seja vontade. O homem ficou a fim, ponto. Entre reafirmações de apreço pelo blues e country, as roqueiras “Heartstopper” e “Trouble” não fariam feio nos últimos CDs de seu grupo. A balada “Illusion” rende algum assunto pelo dueto com Norah Jones, mas é “Love Overdue” (de Gregory Isaacs) que aponta o que ele deveria fazer daqui para a frente: comprar uma ilha no Caribe, onde passaria os dias trepando em um coqueiro – com cuidado para não cair lá de cima e quebrar o coco, como já aconteceu – em meio a versões de reggae.



Com Gilmour, a situação é diferente. O anunciado canto do cisne do Floyd, dez meses atrás, parece que lhe injetou ânimo para retomar uma carreira que havia estacionado em 2006 – não, porém, para tentar outra direção aos 69 anos. Com exceção do jazz de “The Girl in the Yellow Dress”, tudo em seu quarto disco evoca a antiga banda. Inspirado no poema épico Paraíso Perdido, escrito por John Milton no século 17, o álbum gira em torno da ideia de “um dia na vida”. Começa na madrugada (“5 A.M.”), passeia por solos típicos de sua Stratocaster (“In Any Tongue”, “Faces of Stone”), empolga-se com o momento (“Today”) e termina sonhando (“And Then…”). Tão bonito quanto conservador.



Quer saber? A essa altura do campeonato, ambos têm todo o direito de se refestelar em suas respectivas zonas de conforto, contando com a devoção incondicional do fã e a condescendência da crítica. São músicos, não precisam mais de dinheiro, poderiam estar curtindo a aposentadoria. Preferiram continuar dando a cara a tapa, o que é louvável. Assim como você também tem todo o direito de achar tudo tão previsível e insípido que nem para queimar o filme serve.

Velha ordem
Outro nome histórico a dar o ar da graça é o New Order, com Music Complete. Embora pertença a uma geração posterior à de Richards e Gilmour, o grupo padece dos mesmos males: a) sua obra atual empalidece na comparação com os clássicos que escreveu na década de 80; b) não faz sentido querer que a banda desminta sua vocação com algo além do pop eletrônico que lhe trouxe relevância; c) ninguém a não ser o ouvinte já convertido vai se importar com este décimo disco. Que “Restless”, “Tutti Frutti” e “Plastic” redimam o álbum na pista de dança.



(coluna publicada hoje no Diário Catarinense)

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