20091015

Sem medo da água quente

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 10 de outubro de 2001)

Era um cara que facilitava a tarefa da posteridade. Teve o cuidado de olhar para o relógio e anotar a hora exata em que resolveu o que fazer. À 1h57 da madrugada de uma terça, ele matou a charada. E disse “não”. Chamou o amigo, que estava botando som para ninguém, e lhe contou. Seus olhos emitiam um brilho esquisito, realçado pela iluminação roxa do local. Jogado em um sofá no canto da pista vazia, refletia sobre a decisão recém-tomada. Em questão de segundos, ia de uma certeza que dilatava suas pupilas a uma insegurança que deixava suas mãos suadas e cerrava seus dentes, um nervosismo que um trago ou uma tragada poderiam aliviar. Mas ele não bebia e estava sem o seu cigarro.

Lembrava de uma entrevista com o Angeli que lera em uma Caros Amigos. Depois cometeu um aposto em seu raciocínio, só para destacar que a revista nem era dele, era de um amigo que ainda comprava leitura universitária. Leitura universitária... De uns tempos para cá, ele estava com a mania de usar esse rótulo, “universitário”, para definir qualquer coisa que não sabia por quê considerava tão irritante. Não existia o forró universitário, um sucesso? Então. Sem muito esforço, ele conseguia detectar também o pop universitário, o funk universitário, o rap universitário, os filmes universitários, os programas de TV universitários, os DJs universitários, os estilistas universitários.

Voltou ao Angeli antes que fosse muito longe para retomar o fio da meada. Na referida entrevista, o cartunista explicava a ausência de seus trabalhos em certas empresas que monopolizam a comunicação. Nada a ver com liberdade, pois isso seu talento conquistou na marra, e sim com grana. Angeli fala que, em determinados lugares, o fato de estar ali é oferecido como benefício extra-salário. Você terá plano de saúde, vale-transporte, vale-refeição e bônus semestral por desempenho (seja lá o que isso signifique), além de integrar os quadros de uma companhia reconhecida, importante e tal. Imediatamente, ele começa a analisar com mais carinho a tese de outro amigo seu. Que Liminha, que Nelson Motta! O verdadeiro inventor do rock brasileiro como o conhecemos hoje é Angeli.

Ainda saboreava o “não” que o cartunista esfregou e esfregava na cara dos barões quando um calafrio partiu de seu joelho esquerdo, vindo se alojar na altura de seu fígado. Mentiu para si mesmo e culpou o esdrúxulo drinque à base de menta que fora parar em sua mão. Na verdade, seu t(r)emor tinha outro motivo: ele não era o Angeli. Não contava com um milésimo de tanta moral, embora rivalizasse em termos de ego. A dúvida lhe assaltou. Devia ter dito “sim”, pego o seu dinheiro (que, se não era muito, era bom) e aproveitar o logotipo no crachá para tirar onda com a família – o tal benefício extra-salário. Há pouco, seu colega de mercado aceitara proposta similar, compensando a previsível frustração com uma poupança para morar no exterior.

Não, isso não funcionava para ele. Não precisava ser desse jeito. Mas havia outro jeito? Seu último chefe o alertou em várias ocasiões: só se descobre o preço de um homem ao jogá-lo em um caldeirão de água quente. A música da Legião Urbana que ele mais gostava dizia algo parecido: “Você é tão esperto, você está tão certo, mas você nunca dançou com ódio de verdade”. O pai, ouvidor-mór, repetia: você pode até estar morrendo de fome, mas ninguém precisa saber disso. “O que é que você falou?”. Era seu amigo com o fone no ouvido acertando a próxima música, mais uma de alguma banda de Maceió. Aos 22 anos, o moleque não havia escutado o que ele lhe dissera quatro parágrafos atrás e não estava nem aí. Quero vê-lo com 30.

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