20081222

O Natal como ele é II

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 24 de dezembro de 2002)

No último Natal, vimos como Dilamor descobriu, em pleno Atol das Rocas, que um espírito elevado é capaz de suplantar até os mais profundos ressentimentos de quem não ganhou nenhum presente da gente. Neste ano, a mensagem divina nos leva até a Penitenciária Estadual. Na cozinha do tenebroso casarão conhecido como Cadeião da Trindade, escreveu-se uma das mais impressionantes páginas da história do cristianismo. Naquela noite revestida de significado foram plantadas as sementes que desabrochariam na conversão de Guido Copertone. Ou: cada um faz o bem como bem entende.

Sedentário, relapso e cafajeste, aos 23 anos Copertone portava-se como um completo parasita. Jovem criado no tucanato, viu na eleição do pai como deputado a chance de descolar uma boquinha no serviço público. O velho ficou no dilema. Descendente direto dos italianos que desbravaram o Sul do Brasil, uma gente honesta e trabalhadora, que ria das adversidades e acostumada a dizer “obrigado” no lugar de “quanto custa?”, não iria permitir que um capricho do júnior jogasse sua biografia na lama. Ao mesmo tempo, movia montanhas se necessário para atender às vontades do filho. Limpou sua consciência arrumando uma vaga como cozinheiro-chefe dos detentos. Se sobrevivesse na função, o guri provaria ter herdado a fibra dos antepassados. E aí, quem sabe, seria promovido a estafeta em uma repartição qualquer, sem nenhum ônus para a reputação familiar.

E lá se foi Copertone, 1,60 de altura, ser chamado de “mestre” pelos internos já domesticados, que reuniam condições de civilidade suficientes para coexistir entre facas e óleo quente sem pensar besteira. “Trate-os como animais”, aconselhou seu pai antes de abandoná-lo na porta do Cadeião. No primeiro dia, botou em prática o ensinamento. Um polaco magro e alto, que picava tomate, deixou cair três rodelas no chão. Copertone, do outro lado da cozinha, gritou para que todo mundo ouvisse: “Se liga, seu (palavrão que nem o marginal conhecia). Na próxima, é a casa que vai cair aqui!”. O cara, condenado por ter matado com 115 punhaladas o patrão que o despediu, abaixou a cabeça sem olhar para o cutelo que manejava e murmurou um “sinsinhô, mestre”. Copertone sentiu-se em casa.

A jornada na cozinha do Cadeião começava às 4 da tarde e durava 24 horas, com folga nos dois dias seguintes. Nesse esquema de três turmas se revezando, Copertone entrou na escala de 24 de dezembro. Chegou mal-humorado, mais pela ausência de TV a cabo do que por virar o Natal naquele muquifo. Às 2 da manhã, com todos dormindo no quartinho anexo aos fogões, ele se levantou, decidido. Ligou para o seu chapa Cabelo e implorou por vodka. Em menos de meia hora, o amigo conseguiu atravessar três garrafas. Em silêncio, Copertone tomou uma dose. Duas. Na terceira, acordou a rapaziada dizendo que era o Papai Noel. Mandou os presidiários fazerem fila, que iria distribuir o elixir.

Dezesseis homens, um atrás do outro, pacientemente esperavam pelo seu quinhão, a tampinha da garrafa com um gole de bebida. Às 6 horas, os criminosos riam e choravam e abraçavam Copertone, soluçando que aquele foi o melhor Natal que passaram no Cadeião. Zezinho Ninja, emocionado, desmanchou-se em gratidão: “Mestre, se quiser um som novo pro carro, é só me chamar.” O tempo passou e Copertone encontrou sua vocação, tornando-se policial civil. Certa noite, capturou um bandido roubando a casa de um ex-governador envolvido no escândalo dos precatórios. Segurando o meliante pelo cangote, reconheceu-o. Então, em vez de lhe aplicar os óculos árabes (a maior humilhação que um homem pode sofrer), lembrou-se da cumplicidade etílica e apenas lhe desferiu um tiro em cada joelho. Com o butim do assalto, ligou para Cabelo e enfiaram o pé na jaca.

20081219

O Natal como ele é

(coluna publicada no jornal Correio Popular, de Campinas/SP, em 25 de dezembro de 2001)

Aquele réveillon prometia. Com mais dois casais, Dilamor e Gina alugaram uma escuna que os levaria de Natal até Fernando de Noronha, onde saudariam o ano vindouro de um jeito doce na Cacimba do Padre. A embarcação deixou a capital do Rio Grande do Norte no dia 22 de dezembro. Em pouco tempo, só os homens estavam curtindo a viagem, incluindo no rol o capitão do barco, um holandês com a pele rosa, esturricada pelo sol inclemente do litoral potiguar, que não parava de contar histórias de sua adolescência herbífumo-uterina pelas quebradas de Amsterdã. As mulheres, enfastiadas, limitavam-se a suspirar e a proferir variações de “não aguento mais ver mar” e “falta muito, papai Smurf?”.

O protesto feminino foi surpreendido dois dias depois. A noite se insinuava no horizonte quando uma pequena faixa de terra quebrou a monotonia visual. “Aquilo é o Atol das Rocas, a primeira reserva biológica do Brasil, criada em 1979. Pelas minhas contas, devemos estar a uns 240 quilômetros da costa do Estado”, apontou o holandês. “É formado por uma coroa de coral sobre um pilar vulcânico, em cujo centro está uma lagoa de água salgada. Sem água potável e com rala cobertura vegetal, o atol é o refúgio para uma enorme quantidade de aves marinhas. A sede da reserva é utilizada por pesquisadores que estudam peixes e aves, e ali também é um importante centro de estudo e proteção de tartarugas marinhas”, prosseguiu o capitão, como se tivesse decorado o Almanaque Abril.

Tanto mulheres quanto homens entenderam apenas a última frase. Aquela silhueta em forma de casinha devia ser a sede da reserva e aquelas três sombrinhas agitadas, os tais pesquisadores
que estudam peixes e aves. Resolveram aportar a uma distância segura dos corais, mas próxima o suficiente para perceber que os gestos que vinham do atol não eram amistosos. “Vocês não podem desembarcar aqui”, gritavam da pequena faixa de terra. “Isso é área militar.” Dilamor, que, embora não reclamasse, também já estava de saco cheio de tanto mar, revoltou-se. “Porra, não vim de tão longe para ser proibido de descer aqui!”, conspirou com a tripulação. “Vou lá, sim! Quero passar o Natal no Atol das Rocas.”

Pegou um saco plástico e nele enfiou uma garrafa de uísque e um torrão de mais ou menos 70 gramas do mato que a Soninha gosta. E se atirou na água, uma vez que a única maneira de chegar até o atol seria a nado, pois os corais impediam o uso do bote inflável. Gina, na murada da escuna, não sabia se pedia para ele voltar ou se torcia para que ele se entendesse com os caras e sinalizasse com a permissão para que todo mundo deixasse aquele barco “miserável”. Iluminado pela lua cheia, Dilamor seguia compenetrado em seu propósito de vencer os 300 metros que separavam o chacoalhar do barco (nem jogar futebol de botão direito ele conseguia) daquele porto seguro. A uns 200 metros da costa, ele pôde ver melhor o que lhe aguardava: três homens, que continuavam a gritar para que ele se afastasse.


Cada recomendação funcionava como um revigorante para as forças de Dilamor, que apertava os lábios em torno da ponta do saco plástico e dobrava o ritmo de suas braçadas. Finalmente, chegou à terra, tomando cuidado para que o costão bravio não avariasse suas oferendas. O trio já esperava com cara de reprovação. Antes que eles dissessem qualquer coisa, Dilamor desamarrou o saco. Para o primeiro, jogou a garrafa. Para o segundo, aquele estranho pacote do tamanho de um sabonete. O terceiro, de mãos vazias, gritou: “Papai Noel!”. E, nesse instante, Dilamor compreendeu que o espírito de Natal é algo muito poderoso, capaz de suplantar até os mais profundos ressentimentos de quem não ganhou nenhum presente da gente.

20081216

Voltamos em breve com a programação anormal

Primeiro, deixa eu me recuperar da existência de uma banda chamada The Pussy Gourmets.