20080310

Coral no coração, comida na boca

(Quarta de quatro matérias escritas em 2005 para o Visit Florida. Versão do autor.)

A segunda-feira mais original da minha vida começou de um jeito bem comum. Olhando para a cara amarrotada no espelho, fiz as mesmas promessas que todo mundo faz no primeiro dia útil da semana. Minha vantagem em relação à maioria da humanidade era estar em South Miami Beach, me preparando para viajar até Key West. Dirigir pela mítica US 1 fazia uma diferença e tanto para eu acreditar que conseguiria parar de fumar, de comer fritura e de deixar tudo para amanhã. Ou para não pensar nisso; não enquanto estivesse percorrendo os 260 quilômetros que separavam meu hotel na Ocean Drive do ponto mais ao Sul dos Estados Unidos em busca do peculiar, do insólito, do pitoresco deste pedaço da Flórida.

Já havia visto inúmeras imagens do asfalto rasgando o mar azul-turquesa, mas minha excitação devia-se ao número da rodovia. Afinal, nada é chamado de “Um” sem motivo. Com 3.846 quilômetros de extensão, a estrada passa pelas maiores cidades de 15 Estados da Costa Leste norte-americana indo até o Maine, na fronteira com o Canadá. Alguns antigos percursos duplicados pela US 1 conservam seus nomes de época, como a South Dixie Highway. É nesse trecho que cruza Homestead, em uma esquina à esquerda de quem está descendo o mapa, que se localiza uma das atrações mais inusitadas da Flórida. As formas que se erguem sobre seus muros bastam para aguçar minha curiosidade. A história que envolve sua construção torna Coral Castle ainda mais extraordinário.

Conhece a expressão “louco de pedra”? Pois Ed Leedskalnin era um louco de outro material. Seria apenas mais um imigrante europeu que aportou na América sonhando com melhores oportunidades, não tivesse partido de sua Letônia natal com o coração dilacerado por uma garota de 16 anos: às vésperas do casamento, ela o abandonou. Assim que descolou uma grana no Novo Mundo, Ed comprou um terreno e resolveu homenagear sua Sweet Sixteen. Com as mãos e usando ferramentas que ele próprio desenvolveu, de 1920 a 1940 esculpiu portões, camas, lounge, churrasqueira, sala de estar, refeitório, relógio de sol, sofás; enfim, tudo o que se espera de um lar. Que ele tenha modelado blocos de cerca de 30 toneladas sem ajuda, é louvável. Que tenha sido por amor, é comovente. Que tudo seja de coral, é de cair o queixo.

Coral Castle já ficou para trás à medida que a paisagem pantanosa de Everglades vai ocupando as margens da US 1. A placa avisa que crocodilos costumam atravessar a pista. Não vi nenhum. Tenho certeza porque crocodilos não fazem “crac” ao serem atropelados. Confiro pelo retrovisor que, sem querer, acabo de acrescentar a panqueca de caranguejo ao rico cardápio de frutos do mar das Keys – inglês para “cayo”, como os pioneiros espanhóis referiam-se às ilhas estreitas que compõem a região. Apropriadamente, o trecho da US 1 que liga essas tripas de terra, composto por 42 pontes, chama-se Overseas Highway. Daqui a 126 milhas (201 quilômetros), os Estados Unidos terminam. Ou começam, dependendo do ponto de vista.

De Key Largo, a mais larga das cinco grandes Keys, ao ponto extremo Sul do país, em Key West, é quase obrigatório parar em Islamorada. Na “capital mundial da pesca esportiva”, os turistas são recepcionados por uma lagosta de dez metros. Mesmo sem ter sido pescado por ninguém, o crustáceo gigante enfeita nove em cada dez fotografias tiradas em Treasure Village (milha 86,7). O fato de ser uma réplica não importa, até porque espécimes vivíssimos me aguardavam dez milhas adiante. Passando a ponte Lignunvitae, dobrei à direita e parei em frente a uma simples cabana de madeira. Mas eu não estava ali para avaliar a arquitetura. Nem para alugar um barco, a especialidade do Robbie’s.

O responsável pela fama do estabelecimento encontra-se dentro do mar. Ou melhor, os responsáveis: dezenas de tarpons (peixes da família do dourado brasileiro), que ficam rodeando o píer rudimentar nos fundos da cabana. O cardume só faz crescer desde que o dono do negócio salvou um deles - e lá se vão 18 anos! Com a mandíbula direita devidamente costurada (daí o apelido), “Scarface” foi devolvido ao oceano. Por condicionamento, interesse ou qualquer outro nome que se dê para instinto, ele sempre retornava para ganhar comida. Apesar de ter morrido na última década, os peixes que costumavam acompanhá-lo continuaram freqüentando o lugar à procura de alimento.

Agora, era a minha vez de honrar a coexistência pacífica entre Robbie Reckwerdt e Scarface. Comprei dois baldes de manjubinhas a dois dólares cada e caminhei até a beira do trapiche. O reflexo de minha sombra na água funcionou como um sinal para que os dourados se agitassem, antevendo a hora do almoço. Atirei uma na água. Como cachorros atrás de um osso, uma porção deles saiu em disparada atrás do quitute. Da prática, surgiu a confiança. Em pouco tempo, eu não estava jogando mais as manjubinhas, e sim as segurando para que os peixes pulassem para pegá-las na minha mão. Com os baldes vazios e cheio de orgulho por minha ousadia, voltei para a cabana.

Sobre o balcão, reportagens caprichosamente encadernadas mostravam gente – inclusive crianças – muito mais corajosa do que eu. “Arranha um pouquinho, mas não tem perigo”, garantiu a atendente ao perceber minha apreensão ao ver pessoas enfiando o braço inteiro na boca do peixe para alimentá-lo. Aleguei que precisava seguir viagem e, gentilmente, recusei sua oferta de mais um balde. “Além disso, eles têm de ter espaço no estômago para alegrar os próximos visitantes”, brinquei. Minha mão ainda cheirava a peixe quando anoiteceu e as primeiras luzes de Key West acenderam no horizonte. No rádio, a 99.5 Classic Rock rolava “We Are The Champions”. Depois de um dia inteiro descendo a US 1 (para um percurso que, em circunstâncias normais, levaria três horas e meia) sem lembrar do cigarro, achei que tinha todo o direito de cantar com Freddie Mercury.

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