20080221

Não se pode deixar o futuro para trás

Liga a assessora da gravadora Universal convidando para participar da entrevista coletiva do U2 no Rio. “Não, querido, você não entendeu: nós pagamos a sua Ponte Aérea e você será um dos quatro jornalistas brasileiros que terá direito a uma exclusiva com a banda”, explica.

E assim lá fui eu, com meu inglês intermediário, elucidar o maior mistério que envolvia o lançamento de All That You Can’t Leave Behind: por que a inscrição “F21-36” do letreiro do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, que aparece nos anúncios de divulgação do disco, foi trocada para “J33-3” na capa do CD?

O guitarrista Edge me disse que era uma citação do livro de João, capítulo 3, versículo 33, mas que não lembrava o enunciado. Chegando em casa, procurei na Bíblia. “Quem, todavia, Lhe aceita o testemunho, por sua vez certifica que Deus é verdadeiro”, pregava o apóstolo. Ah, interessante. Continuei boiando.

Na matéria, não tive coragem de confessar que pedi autógrafo depois de entrevistá-los. Primeira e única vez que fiz isso – pedir autógrafo para um entrevistado, não sonegar informação ao leitor. E ainda tive a desfaçatez de comentar, enquanto assinavam a capa do disco: “Muito antes de eu me tornar jornalista eu já gostava do som de vocês”. “Ah, interessante”, pensou Edge. E continuou boiando.

Tenho o disco autografado até hoje. Um dia descolo um escâner que preste (o meu, da HP, estragou para todo o sempre exatamente um dia depois de acabar a garantia) e provo a veracidade dos fatos aqui narrados. Por enquanto, contente-se com a matéria.

***

(Reportagem publicada na revista Bizz #186, janeiro de 2001)

Para Edge e Adam Clayton, seria o último compromisso daquela tarde no Copacabana Palace. Só para eles, que ficam ali esperando que a cada meia hora seja permitida a entrada de um novo estranho para distraí-los com perguntas óbvias. A gravadora aproveita e arma todo um cirquinho, imprimindo um clima de mistério e conspiração às coisas mais comuns (elas adoram isso). Depois de uma longa espera, o cristão ungido com a chance de conversar com os rockstars é chamado. Uma assessora da Universal o leva por um longo corredor até uma sala, guardada por um segurança. Chegando lá, outra assessora da companhia faz as honras da casa. Vinte minutos – “atrasou tudo”, comentava a moça, impaciente – e a porta se abre. “Próximo.”

Uma pessoa da equipe da banda recepciona o réporter. “Chá? Café? Algo para comer?”, aponta para as ofertas do mini-bufê montado. Ao fundo, Edge e Adam estão sentados num sofá com dois lugares, ao lado de duas poltronas e uma mesinha. Antes, os dois, mais Bono Vox e Larry Mullen (que no momento devem estar fazendo o mesmo em outra sala), haviam concedido uma entrevista coletiva para cerca de 300 jornalistas em algum salão do hotel. A entrada dos quatro, pela passagem principal (é, eles também adoram um cirquinho), surpreendeu a milícia da gravadora, que esperava que eles usassem o acesso dos fundos, direto para as mesas em frente à audiência, sem circular entre os presentes.

Foi a única quebra de protocolo na meia hora em que durou o encontro do U2 com a imprensa. O motivo oficial da estada da banda por aqui era a gravação de um pocket show para o Fantástico e rodar um clipe no Rio. Com aquela programação de turista para completar – o programa dominical mostrou a incursão do quarteto por uma gafieira, Bono jogando sinuca e tal –, claro que All That You Can’t Leave Behind, seu novo trabalho, também acabou ganhando uma divulgação maciça. O vocalista justificou o contrato com a Globo: “É um evento de tevê, não um show do U2. Aceitamos porque, quando nos apresentamos no Rio foi aquele caos e muitos fãs não puderam nos assistir. Pelo vídeo, estaremos em todo o Brasil”.

O grande momento da coletiva, no entanto, rolou quando um cara se levantou, identificou-se e mandou: “Sou fulano de tal, de Buenos Aires. Sei que você é argentino também (Bono havia acabado de dizer, em português, “eu sou carioca”), mas quero falar de futebol. Quem foi melhor, Pelé ou Maradona?”. Espanto, pasmo, estupor. Pausa para a recomposição do comportamento e fim da algazarra entre os colegas. A intérprete não sabe o que dizer – o hermano perguntara em inglês, quando o combinado era ela traduzir as questões para a banda. Intermináveis 30 segundos separaram o silêncio constrangedor da resposta do vocalista. “Maradona... Olha, quando ouvi seu primeiro disco, pensei: ‘Esse cara tem potencial, vai longe’. Os trabalhos do meio de sua carreira achei muito sofisticados.... No fim dela, vi que era isso aí mesmo”. Golaço!

Edge e Adam já passaram por tudo isso – no fundo, eles gostam – e, agora, a agenda está muito perto do fim para que um ataque de mau humor estrague tudo. Só falta essa. O guitarrista e o baixista têm aquela polidez que os astros adotam para enfrentar maratonas de entrevistas. Jogam o jogo direitinho: sorriem, falam calmamente, passam uma boa impressão. Edge, que na coletiva fora o mais incisivo contra o papo furado de “volta às raízes” (esparrela na qual esta revista também caiu), suspira antes de responder a primeira pergunta, uma brincadeira com o nome do novo disco da banda (Tudo O Que Você Não Pode Deixar Para Trás).

O que vocês deixaram para trás para gravar esse álbum? “Tudo que não era essencial, conceitos que não eram importantes.” Por exemplo? “Há coisas mudando todo o tempo, não consigo apontar algum. Posso dizer que deixamos para trás a cultura musical contemporânea e nos concentramos no que sabemos fazer quando estamos só os quatro, tocando juntos numa sala.” Desde o término da turnê PopMart, em 1998, a banda procurava por essa conclusão. As sessões para a gravação do álbum foram interrompidas nove meses depois, e o U2 decidiu começar tudo de novo.

Em 1999, o recomeço teve de ser novamente interrompido, com o nascimento dos filhos de Bono (Elijah Henwon) e de Edge (Levi Evans), respectivamente em agosto e outubro. No final daquele ano, mais um entrave: o laptop onde o vocalista arquivava as letras foi roubado. “Começamos sem nenhuma canção na cabeça, apenas improvisando com [os produtores] Brian Eno e Daniel Lanois. Entramos no estúdio sem nada preparado, sem qualquer pressão para que as canções surgissem”, conta o guitarrista. A maioria do material daquelas primeiras sessões parou na trilha sonora de Million Dollar Hotel, filme com roteiro de Bono, dirigido pelo chapa Win Wenders. “Mas não funcionavam para um álbum do U2. Isso reforçou um sentimento original de que realmente não importava o que estava para acontecer, desde que viesse de nós quatro juntos.”

E o que estava para acontecer era algo muito diferente do trabalho anterior, Pop. “No começo, pensamos apenas em modificar um pouco a abordagem. Isso remonta à epoca que estávamos na estrada, fazendo a turnê PopMart. Houve uma vez em que precisávamos de algum espaço para trabalhar nos arranjos de algumas canções novas. Então, reservamos uma sala em um hotel e contactamos [o produtor] Howie B para escutar as músicas. Ele caminhou pela sala e falou: ‘Uau, que som!’. Isso é o que acontece quando tocamos juntos, só nós. Aí, continuou: ‘Esse é o disco que vocês devem fazer’. Acho que isso grudou na minha cabeça, pois quando você vem tocando em um grupo há 20 anos, arrisca perder de vista o que você pode fazer. Você é pego pelo que está rolando na música contemporânea, como fizemos em Pop, Passengers e outros projetos. Nós realmente estávamos interessados em tudo o que estava acontecendo e talvez deixamos para trás um pouco da pegada que nos tornou únicos, que é, repito, quatro músicos tocando juntos”, explica Edge.

A retomada, então, foi do formato, não da sonoridade típica do U2. Segundo o guitarrista, esse disco está devolvendo a ênfase para a banda, tornando inevitável que as pessoas reconheçam recursos que o quarteto usara previamente. “New York” não destoaria se estivesse em War (1983) e “Elevation”, em Achtung Baby (1991), só para citar duas pepitas de All That You Can’t Leave Behind que remetem ao passado. “Mas não é algo que a gente faça conscientemente. As canções são muito sobre o momento atual, o espírito no qual elas foram escritas é atual. Estávamos pensando em fazer referências ao passado, e talvez seja isso que o faça soar um pouco como nossos trabalhos anteriores, porque estávamos convictos da idéia de ser uma banda. Não tentamos diluir nosso som outros gêneros musicais, como dance, hip-hop ou industrial. All That... é o que somos, o que fazemos”.

O debate desperta Adam Clayton, que até então limitara-se a observar o desempenho do companheiro. “Só para voltar àquela sua primeira pergunta, isso é uma daquelas coisas que não podíamos deixar para trás: sempre acabamos soando como U2”, afirma. No mínimo, mais pop do que Pop. Edge volta à cena: “Num sentido puramente musical, provavelmente sim. Mas, quando usamos essa palavra no contexto de nosso álbum anterior, estávamos falando mais sobre o sentido geral do termo, sobre a fascinação exercida pela cultura pop naquela ocasião. O disco se apropria das idéias efêmeras daquele período, daquele momento - a cultura dance, que está mudando constantemente”.

Engana-se, porém, quem acredita que esse retorno aos velhos costumes significa que o U2 se fechou para as novidades. Não. “Ainda somos tão fascinados pelo o que está rolando na música como antes, mas acho que também estamos um pouco mais cientes do que nos faz únicos, cientes de que o que nós temos ninguém mais tem”, pondera Edge. Recentemente, ele andou escutando Coldplay, Primal Scream, Radiohead (“Grande!”) e, apesar de não estar tão excitado quanto o resto do mundo, Badly Drawn Boy. O baixista, ameaçando virar um participante ativo do papo, aponta a cantora Macy Gray, o novo de Fatboy Slim e Daft Punk (“aquele single é maravilhoso”).

O olhar de uma terceira assessora (isso já está virando uma epidemia!) indica que os escassos 20 minutos exclusivos com metade do U2 estão se aproximando do fim. É melhor apressar o ritmo com trivialidades. Edge diz que nunca se incomoda com a fama – “como trabalhamos muito duro, isso para mim é um símbolo do sucesso em plano artístico e comercial”. Quase nunca. “Uma das piores coisas é as pessoas dando palpites sobre quem é você.” Quando vocês chegaram mais perto de se separar? [Pensa] “Talvez no final da turnê de Joshua Tree, em 1989. Tivemos de dar um tempo para todas aquelas expectativas das pessoas. Estávamos muito confusos entre música e nós.”

A moça avisa: “Última pergunta”. Vocês são amigos, se encontram fora da banda? “Sim. Dublin é uma cidade pequena. Às vezes saímos juntos.” A assessora dá a entrevista por encerrada. No processo de levantar, apertar as mãos dos dois e agradecer, Edge ainda fala com convicção sobre os desafios do U2. “Fazer melhores canções, melhores letras, melhores arranjos.” Nada de perdão da dívida do terceiro mundo ou encontros com líderes políticos – o papa, Bill Clinton, os primeiros-ministros da Inglaterra, Tony Blair, e da Alemanha, Gerhard Schroeder, o secretário geral da ONU, Kofi Annan. Isso é com Bono, apesar de ele mesmo ter declarado na coletiva que considera ridículo um rockstar ficar falando de economia. “Culpa católica” – o diagnóstico é do próprio – “de um cara bem-pago, bem-vestido e que tem exposição garantida.”

Nenhum comentário: